Ela estava lá, na abertura do FILO2025, quando o espetáculo "Ficções", com Vera Holtz, cumpriu uma das princiapis funções do teatro: questionar. Ela estava lá, com um sorriso no canto da boca, quando a atriz enfiou o dedo nas feridas para perguntar qual o sentido da política, da religião, dos cargos burocráticos num sistema capitalista que nos põem a trabalhar desde que nascemos até morrer em condições, geralmente, insatisfatórias. Pois é, o homo sapiens, tema da peça, evoluiu para uma situação difícil de entender e as desigualdades continuam sendo a base do sistema. Quem pode mais, chora menos e, se precisar, tira a comida do prato do outro para acumular riquezas para poucos.

Ela estava lá quando os shows no Cabaré na Concha levaram milhares de pessoas, ao longo da semana, para o centro histórico da cidade, onde devem estar os artistas de teatro, de circo, os músicos encantadores de multidões que dão à cidade um clima muito mais feliz do que a vigilância de operações policiais que também foram questionadas num dos shows, quando a banda Abacate Contemporâneo usou o microfone para defender a arte no lugar da chamada Operação Choque da Ordem, que multiplica viaturas no centro de Londrina em vez de multiplicar os palcos.

Ela estava lá quando as filas começaram a se formar, outra vez, na entrada do Teatro Ouro Verde para a plateia assistir ao monólogo no qual o ator Eduardo Mossri desfia lembranças do Líbano, uma homenagem a seus ancestrais que chegaram ao Brasil como imigrantes. O espetáculo "Cartas Libanesas" é uma lição de afeto nos tempos em que a migração, por necessidades crueis como fugir da seca ou da guerra, é tomada como crime.

Ela estava lá, antes de sofrer de Alzheimer, folheando seu livro "Memória e Recordação" no qual deixou registrado, em décadas de festival, quantos grupos nacionais e estrangeiros já foram recebidos em Londrina, num acolhimento que supria, com ponchos feitos com cobertores, atores desprevenidos que vinham de outros países da América Latina sem saber que na cidade geava e fazia frio. Ela estava lá porque morreu, mas ainda vive.

Ela estará lá quando a Armazém Companhia de Teatro apresentar no FILO, neste final de semana, o espetáculo "Brás Cubas", numa demonstração de que Londrina ajudou a formar grupos de teatro que hoje têm projeção nacional e voltam para encenar "em casa", no palco em que nasceram, sempre que são convidados para eventos que celebram a cultura local, hoje, com passaporte nacional e internacional de "arte grande."

Eu a vi participando desta edição do FILO, que lhe presta uma homenagem, naqueles cartazes no saguão do Ouro Verde, no banner da Concha, nos espaços públicos onde a música e o teatro ganharam as ruas, nos vídeos institucionais antes dos espetáculos. De boina, com um sorriso maroto, a mão no queixo como quem contempla e ensina a questionar, até hoje, as medidas e as desmedidas de uma cidade metida com arte até o pescoço. Em grande parte, por sua trajetória inesquecível, Nitis Jacon.