Faltando poucos dias para a estreia de "Matrix Resurrections" (2021) nos cinemas brasileiros, o duplo personagem de Keanu Reeves, Thomas Anderson / Neo, nos dá uma pista sobre o mundo da inteligência artificial e das realidades virtuais. A ideia de uma "caixa" onde a humanidade simula uma realidade, sem um pensamento crítico, não é nova. Platão enfocou a ideia em "O Mito da Caverna" muito tempo antes de acharmos uma beleza viver a realidade em 3D.

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. | Foto: Marco Jacobsen

Na caverna de Platão tudo o que as pessoas viam eram as sombras projetadas num mundo interior sem conhecimento do que acontecia fora, na realidade de fato. Isso é a alegoria de uma humanidade que perdeu o percepção e o senso crítico.

Impossível não fazer associações filosóficas ou mesmo não se lembrar de Matrix quando o big boss das empresas de tecnologia , Mark Zuckerberg, anuncia o Metaverso e põe boa parte do mundo de quatro.

A criação de uma realidade virtual que as pessoas vivem cada vez mais como a única realidade, de certa forma nos devolve à caverna de Platão. Não podemos deixar de pensar que estamos diante das telas , mas que todos os nossos sentidos precisam de uma percepção mais ampla de como as coisas funcionam fora da caixa.

A ideia do Metaverso proposta por Zuckerberg é sedutora, mas não é nova. Tão logo foi anunciada, pesquisadores invocaram as origens desse "futuro da internet". Pra começar, o Metaverso não é uma criação do Facebook. Sua origem está no livro de ficção científica "Snow Crash" (1992) , de Neal Stephenson. No enredo, o metaverso é um espaço virtual em 3D, cheio de avatares que interagem em diversos tipos de experiências.

Há pelo menos 18 anos também surgia a Second Life, um jogo, um espaço virtual criado pelo estúdio americano Linden Lab para ser aquilo que o próprio nome projeta: uma segunda vida e embora grandes marcas tenham investido em lojas virtuais dentro desse novo universo, a SL não decolou no 'mainstream', embora exista até hoje limitada a uma bolha virtual, entre tantas.

Mas o motivo desse artigo não é apontar as semelhanças entre mundos paralelos, é questionar as novidades sedutoras que constroem um mundo novo em meio a velhas desigualdades, trata-se da mais dura realidade, sem simulações. A pergunta que se coloca é se além de alavancar negócios e mercados, o Metaverso que vai em certa medida roubar nossa identidade - nos condicionando a ser avatares em experiências diversificadas - servirá a alguma coisa para além da maquinaria de algoritmos, modelo seguido hoje pelos negócios que simulam mundos e fundos, na acepção da palavra. Hoje, criamos, compramos e absorvemos conteúdos alavancados por algoritmos, um mundo de robôs capazes de vender imagens, produtos e até ganhar eleições presidenciais à base de simulacros.

O que se coloca não é contrário aos horizontes ampliados pela tecnologia que melhora nossas vidas em tarefas simples, como a das operações bancárias ou os exames complicados que escaneiam com precisão nossa saúde. O que se questiona é em que medida o nosso modelo social está tão avançado quanto nosso modelo virtual.

No Brasil, na fase aguda da pandemia, tivemos a certeza de que a educação pública estava a anos-luz da tecnologia que nos deslumbra. Aqui mesmo no Paraná, alunos sem internet receberam nas porteiras da zona rural o conteúdo escolar das mãos de professores abnegados. A vida não pode ser uma virtualidade expandida, instalada na precariedade dos países pobres. Nesses mundos precários, a realidade em 3D terá utilidade limitada a um nicho de felizes compradores para implementar o mercado gerando lucro para os mesmos donos do mundo.

Monitorados por plataformas e redes que manipulam nossos desejos nos levando a mercadorias que a cada três minutos aparecem em nossas telinhas, já temos nossa privacidade devassada, a ponto do mercado saber se usamos calcinhas de algodão, se fomos ao cinema ou se preferimos comida chinesa. E todo esse monitoramento é naturalizado num universo que, na contrapartida, oferece bem pouco ao invadir nossa privacidade, nossa liberdade e, agora, nossa identidade. O que falta é ética!

Como diz meu filho Gustavo Galvão, 25 anos, estudante de Ciências Sociais, com quem reflito aqui em casa: "O que está em pauta é se este espaço será de circulação livre de informações - como se propunha desde a invenção da internet e das redes - se servirá de estímulo ao desenvolvimento humano, se conseguiremos, a partir dessas novas ferramentas fantásticas, transformar o mundo para melhor, ou se este espaço é simplesmente mais um local de reprodução das desigualdades."

Incorporar um avatar pode parecer sedutor, mas a realidade não é um jogo, nem uma simulação onde tudo se resume a enviar uma meta identidade para uma reunião maçante participando virtualmente daquilo que é muito chato no corpo a corpo. Aliás, penso que um dia sentiremos falta do corpo a corpo, do olho no olho, da criatividade fora do mundo das NFTs e da arte incorporada aos simulacros. Porque tudo isso se reveste fortemente de oferta e procura, compra e venda, produto e grana.

Seduzidos por óculos 3D e nos sentindo engajados ao admirável mundo novo, não podemos ter apenas um olhar virtual sobre a realidade que se desenha catapultando nossos desejos por algoritmos, numa vivência mediada por impulsos artificiais numa cultura de algoritmos, jornalismo de algoritmos, arte de algoritmos, enfim, relações de algoritmos. A tecnologia é bem-vinda desde que não se perca de vista a humanização dos processos básicos de sobrevivência da espécie. Os superpoderes da tecnologia ainda exigem um olhar sobre Platão ou seremos devolvidos às sombras nas paredes da caverna.

Imagem ilustrativa da imagem Estamos vivendo Matrix?