Como subverter o tempo?
Todo sótão tem na porta uma tabuleta invisível onde está escrito: "passado", um tempo que não se reedita
PUBLICAÇÃO
sábado, 10 de agosto de 2024
Todo sótão tem na porta uma tabuleta invisível onde está escrito: "passado", um tempo que não se reedita
Celia Musilli
Nos sentimos tristes quando as linhas do passado se transformam num novelo de lembranças, mas são só lembranças, daquelas que têm músicas de fundo que levam a um lugar do sótão.
Todo sótão tem na porta uma tabuleta invisível onde está escrito: "passado", um tempo que não se reedita e deve permanecer no sótão, onde nem sempre se fazem boas visitas. Nunca gostei de reencontrar pedaços de bonecas, nem velhos casacos, nem vidros vazios como a brincadeira que evaporou. Não sou do tipo que tem prazer em voltar a lugares antigos, cidades que habitei e evito algumas fotografias que me parecem a vida presa nas molduras.
Nos sentimos tristes quando enxergamos o futuro como uma moedinha que cai no chão , sem que a gente consiga adivinhar se vai dar cara ou coroa. O futuro é um tempo sem controle. Vocês diriam: "Que bom!" Eu compreenderia. Mas há a angústia inevitável do desconhecido, no movimento da moeda que rola uma sorte bem mais arriscada do que a de um jogo da infância, no qual perdemos chicletes ou, no máximo, algumas figurinhas.
O tempo é sempre um desafio para quem busca a felicidade. Porque o tempo é um cavalo veloz.
O que me intriga são estes flashes involuntários entre o passado e o futuro. Eu, que desejo colar na banda do presente e aspirar cada molécula de ar como se fosse a única. De quantos momentos únicos são feitos nossas vidas? Um flash na penumbra e meus olhos anoitecem num hotel, na sacada que se abria sobre a cidade, com nossas silhuetas suspensas como dois pássaros.
Neste instante, sinto saudades de um compartilhar de poemas e também das cenas mudas de quem escreve perguntas e respostas a 500 quilômetros de distância, subvertendo o espaço. Mas o que fazer com o tempo?
Tenho medo do silêncio quando estou longe das pessoas que amo e não há palavras. Mas amo o silêncio quando estou na sua presença, porque há duas espécies de silêncio: o mutismo das coisas perdidas e o indecifrável das coisas intensas, quando dispensamos frases e mergulhamos na contemplação.
Entre as linhas do passado e as moedinhas que rolam, só desejo algumas cenas. Podemos reeditar o filme dos pássaros na varanda?
Há uma imagem que quero refazer pela delicadeza daquela suspensão do instante em que o silêncio fala e escuto o que nunca ouvi antes.
Só tenho saudades da poesia que ressoa.
* Crônica publicada originalmente em dezembro de 2009.