Poemas podem ser feitos espontaneamente ou serem concluídos a partir de uma engenharia de palavras.

Já tive algumas experiências com poemas, alguns aparecem e se escondem, ficam inconclusos, e qualquer tentativa de dar um curso àquilo pode ter um resultado bem ruim. Então os coloco na "geladeira", podem ficar ali por anos, me desafiando como aquilo que não realizei, trata-se de uma "coisa" da qual tive apenas um vislumbre.

Existem poemas que nascem como peixinhos, um dia eclodem dos ovos, sabe-se lá como, eles é que escolhem o dia e a hora. Esses não precisam ser "pegos à unha", ao contrário de outros que exigem uma tourada e quase nunca ficam bons. Ainda que os teóricos ponham em dúvida a geração espontânea de um poema, eles existem, como fruto, claro, de um repertório de leituras e escritas, mas ainda assim um mistério.

O mais intrigante é que nem sempre o poema queridinho do poeta é aquele que vai ganhar ou leitor ou promover identificação na leitura. O leitor quase sempre gosta daquilo que ecoa como uma experiência sua. Embora existam muitos que também são pegos pelos desafios. Mas o desafio do entendimento muitas vezes não corresponde à emoção de um poema que nos toca por caminhos inescrutáveis.

Eu me apaixono pelo enigma dos poemas, não busco neles a objetividade da mensagem, mas me encanto pelo seu claro/escuro, pelo convite da palavra ou do verso propondo decifração. Já alguns, muitas vezes, preferem poemas mais diretos, aqueles que não se escondem e, quase sempre, carregam temas universais.

Então, seguem dois poemas que fiz em circunstâncias diferentes. Um é sobre o amor, outro sobre a condição da mulher e da feminilidade, com a citação de um verso de René Char que me capturou pela beleza. Ficam aí expostos para que cada um faça sua escolha ou escolha nenhuma. São apenas poemas que se apresentam por inteiro ou existem como enigmas.

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. | Foto: iStock

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ÚLTIMO CANTO

o último poema de amor

já nasce esquecido

ele atravessa a geografia insólita

o desejo inacabado

o horizonte perdido

*

o último poema de amor

corre veloz como um rio

arrasta seixos folhas beijos

corações e pétalas

*

arrasta a saudade selvagem

dos que ficaram no exílio

sem desfazer o pacto de celebração e mistério

do seu primeiro poema de amor

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SILÁBICA

ela ave

ela voa

ela nave

ela via

ela vulva

ela vulnerável lia

em sânscrito:

"a lua de Magritte é uma fêmea de silex

que só põe ovos de noite"

*

na suspensão da palavra

nasce a beleza da pedra

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A opinião da colunista não reflete, necessariamente, a opinião da Folha de Londrina.

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