O cavalo Ventania foi resgatado depois de ser abandonado pelo dono. À beira da estrada com mais pedras que capim, tentava encontrar algum pasto, sem água para beber. O resgate chegou num caminhãozinho, o animal relutou em subir a rampa de tábuas. Depois de abandonado, não confiava muito nos homens. Com passos lentos subiu porque não tinha saída. Era a estrada seca ou a chance de ir para outro lugar, que podia ser também o matadouro.

Ventania chegou à fazenda onde cuidam de animais na mesma situação que ele. De imediato não suspeitou o que queriam nem se identificava com as éguas e cavalões bonitos que corriam ali pelo pasto. Salivou quando viu que teria comida, mas foi levado para uma baia. Antes de entrar lhe ofereceram água fresca num balde, desconfiado, bebeu uns golões, como um trabalhador que vai para o bar depois de um dia difícil, uma vida de cavalo.

Ventania bebeu uma, duas, três vezes. Saciado, foi levado ao cercado onde ainda lhe deram um tufo de capim. Arrancou uns pedaços ainda na mão da tratadora, virou para o lado e mastigou. Comeu tudo e de barriga cheia percebeu que tinha um vizinho. Um cavalo com pelo em melhores condições que o dele, muito diferente das marcas e feridas que indicavam no seu lombo onde havia ficado o arreio.

Por um tempo, chamado quarentena, ficou no cercado numa vida mansa que nunca tinha conhecido antes. De vez em quando, a veterinária vinha conferir como estavam as feridas e as falhas do pelo.

Em dez dias deu o primeiro passeio num pasto cercado, levado por um tratador, andava de cabeça baixa, a confiança ainda era pouca e o porte indicava tristeza. Quando voltava à baia ficava espiando o vizinho pelas frestas, o outro correspondia aos relinchos, os dois tinham “sotaque” mineiro.

Minas Gerais é a terra dos lindos cavalos mangalargas, Ventania nunca aspirou a uma vida como a daqueles animais de raça. Ainda não era velho, mas tinha trabalhado muito, antes na roça, depois quando o dono mudou da zona rural para à cidade, abrindo mão do pequeno sítio que ficou com a família por mais de 50 anos. Mas, com o tempo, o dono não tinha mais como tratar de Ventania e o abandonou na estrada.

Na cidade, Ventania ainda trabalhou bastante, foram oito anos de asfalto e curvas, carregando a carroça para o dono que passou a fazer mudanças, coisas de gente pobre, geladeiras e fogões aos pedaços que eram levados rua acima e rua abaixo. Ventania cumpria sua parte, mas quando se cansava, diminuindo a marcha, levava chicotadas no lombo que já tinha feridas que se fechavam e se abriam, às vezes infectadas por bicheiras.

Era um cavalo adulto, tendendo para velhice quando foi resgatado. Com o trato, os olhos voltaram a brilhar de novo, já não comia com desconfiança, bebia água como um trabalhador que toma cerveja, as manchas despeladas começaram a se cobrir com um pelo castanho.

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. | Foto: Marco Jacobsen

Aos vinte dias da quarentena tomou o primeiro banho dado por Cristina, a tratadora que lhe batizou de Ventania e conversava com ele enquanto jogava água em seu corpo com um esguicho.

Faltando dez dias para a liberdade de correr livre pelo pasto, a magreza exposta nas costelas salientes já não era tão grande, recoberta pela pelagem nova já exibia uma condição que 'dava para o gasto'. Na data em que venceu a quarentena, foi solto juntamente com outros cavalos num pasto verdinho. Era um dia chuvoso, a natureza parecia mais viva que nunca, mas o grande dia ainda iria chegar.

Na manhã seguinte, Ventania foi solto num pasto maior, junto com outros dois cavalos castanhos. Em pouco tempo passaram da caminhada à corrida emparelhados, três cavalões brincando como potrinhos. Corriam em círculos aproveitando todo o pasto, aquela largueza verdejante da qual tinham perdido a memória, nos anos em que Ventania e seus companheiros foram subjugados por arreios. Agora o mundo pequeno parecia grande. Agora era a vida, numa corrida que inaugurava a liberdade como um renascimento de toda a criação.

* Crônica inspirada num vídeo divulgado pela Lucky Orphans Horse Rescue, associação americana para resgate de animais maltratados e abandonados. Confira o site: http://luckyorphanshorserescue.org/