No último fim de semana, a juventude negra do Brasil somou sua voz aos protestos que têm como alvo o governo de Jair Bolsonaro e seu atropelo de direitos básicos que pretendia, até mesmo, converter os cerca de R$ 83 milhões destinados ao programa Bolsa Família em propaganda governamental. A ilegalidade foi pega no pulo por entidades jurídicas e pela própria população brasileira que contestou o desvio de recursos destinados ao segmento mais pobre do País para a máquina publicitária de um governo que, mais uma vez, foi obrigado a voltar atrás.

Mas qual foi mesmo o recado das ruas no último domingo? As ruas disseram que não toleram mais a discriminação social, econômica e racial no Brasil. Unidos ao movimento #Somos70Por Cento - que não foi compreendido por algumas lideranças da própria esquerda - a juventude negra não deixou por menos e, contra o que chamou "vírus do bolsonarismo", correu o risco de se expor nas praças e avenidas para deflagrar um grito que vai além da contaminação pela pandemia. Eles falaram da contaminação das ideias e comportamentos racistas introjetados na sociedade brasileira há séculos sob os auspícios de uma pretensa aproximação da Casa Grande com a Senzala que soa como um blefe em pleno século 21.

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. | Foto: Marco Jacobsen

No Brasil contemporâneo é muito maior o número de mortes violentas de jovens negros que brancos; é muito maior o número de negros alijados do mercado estável de trabalho e colocados em subempregos como o de entregadores de comida “de grife” em aplicativos - mesmo com a barriga vazia - ou se valendo de bicos que remuneram muito aquém de um salário mínimo.

Nesta edição da Folha 2, fomos além das estatísticas. Fomos aos relatos de artistas que hoje têm reconhecimento nacional e local, mas já sofreram e ainda sofrem na pele a discriminação racial.

A humilhação, em qualquer nível, cria feridas profundas que cotidianamente são tocadas pelos dedos primitivos do preconceito presente em frases como “serviço de preto”, “ter um pé na cozinha” ou “cabelo ruim.”

Do bullying na infância às dificuldades para chegar a uma formação universitária que só foram compensadas pelo regime de cotas - que mesmo assim é questionado por aqueles que reclamam essas vagas públicas para os filhos que estudaram inglês, música, ballet e comeram bem desde criancinha - a população das periferias, prioritariamente negra e exposta a discriminações variadas, assume seu protagonismo com mais força neste momento.

A arte brasileira seria bem menor sem essa representação, sem essa contribuição irretocável de ritmos, danças, linguagem, cultura afro, enfim. Cultura forte, vigorosa e denunciadora como os versos da canção “A Carne” (composta por Seu Jorge, Marcelo Yuca e Wilson Capellete) e gravada por Elza Soares:

“A carne mais barata do mercado é a carne negra

que fez e faz história

segurando esse país no braço

o cabra aqui não se sente revoltado

porque o revólver já está engatilhado

e o vingador é lento

mas muito bem intencionado

e esse país

vai deixando todo mundo preto

e o cabelo esticado”