Um dos filmes em alta e que estreou na Netflix apenas no último dia de 2021, já é um forte concorrente ao Oscar, incluindo o de melhor atriz para Olivia Colman que está no papel principal como a personagem Leda, interpretada também pela atriz Jessie Buckley na juventude. As atrizes brilham, fazendo as duas fases da vida de Leda, o que só aumenta o arrebatamento do filme que toca sobretudo as mulheres, da juventude à maturidade, dos nervos ao coração.

O ritmo imprimido pela diretora Maggie Gyllenhaal seduz os espectadores, e se já não bastasse esse trio incrível de mulheres, a história parte do livro da escritora italiana que assina sob o pseudônimo Elena Ferrante. Trata-se inegavelmente de uma criação completa de um quarteto que captura os papéis femininos na sua essência ao tocar num ponto nevrálgico: a sacralização da maternidade, que pode ser vista não só como uma virtude , mas como um tolhimento sob o ponto de vista cultural numa sociedade que tanto cobra das mulheres que também são mães.

Há simbolismos importantes no filme, como a laranja descascada por Leda para divertir e ensinar a habilidade para suas filhas na infância, duas meninas entre três e cinco anos que vão aparecendo aos poucos, como camadas da vida de Leda ou como a casca da laranja tirada cuidadosamente na tentativa de não se quebrar. A tira da laranja descascada pode simbolizar o fio da narrativa sobre a trajetória da personagem: Leda é uma mulher brilhante em sua carreira de professora universitária de literatura comparada e também é mãe.

Viva, inteligente, brilhante desde a juventude, é essa Leda que vamos encontrar na idade madura, numa ilha grega, no início do filme, em férias que seriam descontraídas, se não fosse a presença de uma família invasiva e ruidosa que aos poucos vai tirando seu sossego. Evitando o spoiler, mas dando uma pincelada sobre as férias na praia, é possível dizer que uma das mulheres da família espaçosa, Nina - interpretada pela belíssima Dakota Johnson - aparece repentinamente na vida de Leda, como o gatilho de suas contradições de mãe e intelectual bem sucedida.

Quem quer que se tenha se deparado com escolhas na vida, sabe o quanto as mulheres são cobradas quando pretendem uma carreira vitoriosa, mas também são mães. O equilíbrio entre a tese e as mamadeiras, os livros e a solicitação de atenção constante pelas crianças, abre para as mulheres um caminho bifurcado e quase sempre dolorido. A sacralização da maternidade, presente na cultura, torna as escolhas difíceis numa sociedade que costuma ser implacável com as mulheres.

Se um homem em determinado ponto do casamento sai de casa para estudar e trabalhar só merece elogios e, não raro, se torna o ponto de convergência de atenção e de orgulho da família. Se uma mulher deixa a casa, mudando de cidade mesmo que temporariamente para estudar ou trabalhar - coisa que na vida contemporânea tem se tornado comum, até porque muitas mulheres sustentam suas casas - o tribunal social e familiar se forma antes mesmo da sua saída. E paremos por aqui, para os leitores e leitoras fazerem sua própria interpretação do filme.

"A Filha Perdida" é uma trama densa e delicada que se abre em camadas até o espectador chegar ao âmago da personagem que carrega um mistério que será decifrado aos poucos ou nem tanto. Um dos trunfos da diretora Maggie Gyllenhaal é justamente criar uma obra aberta, não se preocupando em decifrar tudo. Serão as espectadoras, com suas bagagens de vida, que vão preencher as lacunas deixadas de propósito até o desfecho, com a personagem às vezes descascando a laranja até o fim sem quebrar a casca, como quem pretende uma linearidade na vida familiar nem sempre alcançada, porque as "cascas" costumam se quebrar.

Outro elemento simbólico importante no filme são as bonecas, uma delas é um elemento fortuito de toda a trama, colocado ali como um acidente. É com as bonecas que as mulheres treinam seu papel de mãe e o apego das meninas é embalado no sonho da maternidade como uma coisa fácil, o que nem sempre é verdade. As bonecas não choram nem adoecem pra valer, não exigem atenção se a menina jogá-las num canto, elas são apenas a representação do que se espera da maternidade, mas o "treino" é muito diferente da realidade e da responsabilidade. Que o digam as mães adolescentes ou as mães maduras entre as papinhas e o doutoramento.

Despetalando paradoxos, ambiguidades e sombras sobre a vida de Leda - que carrega no próprio nome a referência ao mito erótico de "Leda e o Cisne" - a diretora parte da literatura sensível de Elena Ferrante e entrega ao público uma verdade indigesta espetada como um alfinete na ideia da maternidade idealizada que pode não trazer, como se supõe, apenas felicidade, mas sofrimento. As mulheres sabem onde se esconde o espinho na flor, ainda que isso não possa ser assumido diante dos tribunais morais sob a pena de uma condenação que se carrega como culpa social e íntima, do começo ao fim da vida.