A crônica e as cidades
No cotidiano, imersos em preocupações, nem sempre prestamos atenção às cenas urbanas, mas estão ali os nossos filmes diários
PUBLICAÇÃO
sábado, 03 de agosto de 2024
No cotidiano, imersos em preocupações, nem sempre prestamos atenção às cenas urbanas, mas estão ali os nossos filmes diários
Celia Musilli
Reunir crônicas para um livro é visitar de novo os acontecimentos. Ao separar 50 crônicas, entre as centenas que escrevi, para o livro "A Cidade na Retina", a ser lançado em breve, revi lugares, pessoas e situações que formam o cenário de uma vida.
A maioria dessas crônicas se passa em Londrina, outras em Campinas e São Paulo, onde também vivi.
Nestas e outras cidades me alegrei, entristeci e, sobretudo, passei por tantas experiências diferentes que formam avenidas existenciais, atmosferas, relacionamentos com outras pessoas, laços que se juntam e se dissolvem.
A vida urbana oferece uma riqueza imensurável de impressões. Não à toa, os surrealistas elegeram a condição de flanar pelas cidades como a da liberdade que permite o maravilhamento em situações do cotidiano, em busca da dimensão real de nossa passagem pelo mundo.
As cidades, suas esquinas, seus becos e seus personagens estão à disposição e à espera da criatividade que transforma nossa leitura da vida.
Não se trata apenas de dobrar uma esquina, mas perceber que aquela esquina oferece um canal de vento especial, o cheiro do restaurante ou a placa com um nome histórico.
No cotidiano, imersos em preocupações, nem sempre prestamos atenção às cenas urbanas, mas estão ali os nossos filmes diários, o enredo, as narrativas a serem escritas, a confusão e a ordem que, no meu caso, formam a alma da crônica.
Minha relação com as cidades vem desde a infância, quando meu pai me tomava pela mão ensinando como atravessar a rua.
Desde então foram muitas travessias, da avenida Paraná à avenida São João, com a manha de cortar as praças para encurtar caminhos, em vez de apressar o passo.
A travessia da cidade merece mais calma que pressa, mais contemplação que mera passagem, mais atenção aos detalhes do que o afobamento de chegar antes.
Nem sempre é importante chegar primeiro, mas caminhar, integrando-se à paisagem como os insetos, o urubu que plana, a ave que faz o ninho nos semáforos. Assim praticamos uma entrega aos olhares que, no fim das contas, são o fio da mais uma história.
Não a história grande, mas a pequena, do cotidiano que pode parecer igual mas é múltiplo como o pôr do sol que não se repete ou as nuvens sempre em novos desenhos.