Uma das tarefas importantes da imprensa, hoje, é desconstruir a manipulação que ganhou gás nas redes nas quais a credibilidade, ao contrário do jornalismo, não se constitui um valor. Um discurso vazio ganha status de verdade porque é repetido muitas vezes pela força do compartilhamento, trata-se da guerrilha digital.

Esta semana procurei espectadores comuns para criticar o documentário “Democracia em Vertigem”, concorrente ao Oscar neste domingo (9). Pensei que seria fácil, porque vi muita gente se digladiando na internet desde que o filme foi lançado. Tinha a opinião de pessoas favoráveis ao documentário, não exatamente porque são críticos de cinema, mas porque vivenciaram alguns processos que lhe deram origem, como a ditadura, e se identificaram com o que viram. Então procurei quem não gosta do filme para fazer eco às palavras do jornalista Pedro Bial, que considerou o documentário uma "ficção". Pelo bem da informação, queria opiniões fundamentadas, não palpites de quem critica sem esclarecer motivos.

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. | Foto: Marco Jacobsen

Ao procurar perfis na rede, entre pessoas próximas, deparei-me com uma senhora que critica veementemente a produção e propus entrevista. Ao telefone, depois de muito falar isso e aquilo, a mulher não soube citar uma cena de que não tenha gostado por uma razão: ela não assistiu à “Democracia em Vertigem.” Ela critica porque a turma da sua bolha tece comentários que ela reproduz como um papagaio eletrônico. Faz parte da turma que repete o bordão :"não vi e não gostei" ou "mesmo se visse não iria gostar" (sic).

Um dos objetivos dos jornalistas tem sido desconstruir as falácias que vicejam por aí, encarando a manipulação de informações que circulam como fake news de comadres, como desinformação repetida para formatar um discurso vazio. É assim que ocorre muitas vezes quando a gente procura checar informações numa entrevista sobre um autor que a pessoa finge conhecer e descobre depois que o entrevistado nunca leu um livro dele.

Se antes as pessoas davam 'aulas' de literatura lendo 'orelhas de livros', hoje dão aulas sobre assuntos dos quais nem viram as orelhas, mas repetem a 'audição'. Se uma bolha diz que um documentário não é um documentário, porque traz a visão do autor sobre um fato, muitos não vão procurar saber que o gênero documentário pode trazer versões autorais de um fato. O que não significa que o autor é um mentiroso, mas apenas que sua produção revela sua percepção de um acontecimento. Documentários também registram processos segundo a bagagem e o lugar histórico, social e cultural do autor, trata-se de sua percepção.

É muito difícil despir-se de todos os preconceitos para apreciar uma obra de arte. Julgar uma obra ou um autor por conta de nossa ideologia, nosso puritanismo ou moralismo é um risco medonho. Ezra Pound foi um poeta de direita, apoiou até o fascismo, pagou seu preço por isso, mas deixou uma grande obra. Charles Bukowski era um bêbado, no entanto, até sua ressaca é poesia.

O filme de Petra Costa é uma escolha autoral sobre acontecimentos e isso não é um defeito, é seu modo de registrar as coisas como faz o diretor norte-americano Michael Moore, sem que ninguém ponha em xeque se o que ele faz é ou não um documentário. No caso do filme de Petra Costa, a acusação surge não porque as pessoas estão interessadas em cinema, mas porque a direita converteu certas coisas num blefe como um “um novo modo de fazer política.”

Até o fechamento desta edição, procurei espectadores comuns que pudessem fazer uma crítica consistente do filme de Petra Costa. Ela é tendenciosa? É. Assim como Ezra Pound apoiou a direita e Bukowski era um bêbado, mas ela fez, sim, na minha opinião, um bom documentário que se transformou numa peça de resistência. Segundo sua visão e a visão de muitos, isso tem um valor histórico. Não gostar de um filme é uma questão pessoal, desqualificá-lo exige crítica competente.