Imagem ilustrativa da imagem A arte de perder e seus mistérios
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"A arte de perder", de Elizabeth Bishop, é um dos poemas mais lindos que conheço. Num trecho diz: "Perdi duas cidades lindas./ E um império/ Que era meu, dois rios, e mais um continente./ Tenho saudade deles. / Mas não é nada sério."

Talvez, o conforto de não levar a vida tão a sério seja a resposta para as pequenas dores. Mas o que fazer com as grandes? Perder uma chave ou a casa inteira dói. Mas perder um amigo me põe a pensar que a perda irreparável não é a dos lugares, nem das paisagens. O problema de perder pessoas é que elas se tornam invisíveis e nisso reside um dos maiores mistérios da morte que tira do nosso campo de visão a pessoa, seu andar, seus gestos. Suprime da audição sua voz, do olfato seu cheiro que, para mim, é uma das coisas mais significativas quando se trata da presença. Cheiro é difícil de recuperar, de ressignificar. Cheiro é a percepção familiar mais íntima, a que poucos têm acesso em se tratando de outra pessoa. Talvez por isso os perfumes sejam tão marcantes como memória do corpo.

Quando ocorre a perda total do contato - quando não mais se vê, nem se escuta uma pessoa - sobrevivemos graças à virtualidade que existe em nosso cérebro, muito antes dos computadores. É lá, pelo milagre de neurônios e sinapses, que a pessoa vem a nós sem voltar de fato ao mundo. Isso ganha com a informática uma espécie de materialidade extra que se não vence a morte, a ludibria.Quando perco um amigo que era meu contato numa rede social, conservo sua página se a família decidir mantê-la. É assim que "recebo" de vez em quando um poema, uma fotografia, um conselho ou tenho a percepção de um pensamento de quem não está mais aqui.

Nas lembranças cabem pessoas inteiras ainda que tenhamos de colar caquinhos, criando um quebra-cabeças particular de peças que formam nossas relações nesse mundo. Se no momento da dor maior queremos às vezes apagar memórias - por uma questão de autopreservação e defesa - elas depois nos revisitam quando estamos mais tranquilos e aí sim, doendo ainda, mas consolados pelo tempo, às vezes reencontramos a mãe, o filho, o amigo que se foi e percebemos detalhes que nem em vida havíamos notado.Foi assim com um anel que sempre traz de volta minha mãe, um banco vazio que para sempre me trará meu pai. Então, a finitude ganha um recomeço, a transitoriedade começa a fazer sentido através daquilo que não colamos em vida, mas recompomos com a morte que faz eclodir detalhes na busca da reconstrução do que se foi.

Meditando sobre a dor das pessoas que perderam entes queridos, lembro-me de brotos de roseira e galhos novos de árvores que pareciam secas. O tempo todo, a natureza nos ensina que nem tudo é ausência, nem deserto. E se as coisas não são sempre iguais, resta a esperança num outro florescimento, num broto, numa folha nova que surge às vezes das lembranças. É dessa forma, misturando virtualidade e memória, que muitas vezes curo feridas, colando sobre os machucados um ungüento de plantas até que eles virem a cicatriz que recobre a carne viva.

Neste ponto, lembro-me de um verso final do poeta Claudio Willer, que cola sobre o desastre existencial uma palavra que considero absoluta: "Sobreviveremos". Ela é a conclusão de um poema que integra a série "Visitantes" e faz todo sentido. Não se esqueçam disso quando perderem filhos, não se esqueçam disso quando perderem continentes, todos nós perdemos alguma coisa o tempo inteiro, essa é a grande a lição da primavera, mistério do renascimento.

*Crônica publicada originalmente em 25 de setembro de 2015.

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A opinião da colunista não reflete, necessariamente, a da Folha de Londrina.

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