Woody Allen, mimético de si mesmo
'Um Dia de Chuva em Nova York' , em cartaz na cidade, traz mais da excelente cinebiografia de um mestre
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quinta-feira, 05 de dezembro de 2019
'Um Dia de Chuva em Nova York' , em cartaz na cidade, traz mais da excelente cinebiografia de um mestre
Carlos Eduardo Lourenço Jorge
Aos 83 anos, Woody Allen não busca inventar nada. O cinema tem sido sua terapia, com um filme estreado a cada ano como regra geral e quase como norma de subsistência, desde o final da década de 1960. E nada melhor do que saber que o cineasta está de volta, depois de vencer uma disputa judicial com a Amazon, com qual tinha contrato para a realização de quatro longas. Há cerca de dois anos, a divisão de filmes da empresa (Amazon Studios) sequestrou “Um Dia de Chuva em Nova York”, já concluído, visando impedir sua distribuição e exibição por conta das repercussões midiáticas da acusação de assédio, apesar da absolvição do diretor pela justiça no processo movido por uma enraivecida esposa rejeitada, Mia Farrow – décadas mais tarde, o bebê de Rosemary revelou-se muito pior que a encomenda projetada pelo filme de Polanski...
“Um Dia de Chuva em Nova York”, em terceira semana no circuito local, é comédia romântica que agrada pelo minimalismo impressionista e irreal, pelo bom ritmo e pela fluidez dos diálogos. Allen leva um casal deliciosamente anacrônico a uma viagem de fim de semana a Nova York, viagem que se pretende romântica, mas que resultará mais que agitada.
Ele é Gatsby (batismo nada gratuito), rico, bonito, estudadamente afetado, amante daquela Big Apple old fashioned, das velhas canções e dos night clubs com pianista incluído : ela é Ashleigh (Elle Fanning, entregue de corpo e alma ao ritmo da comédia, provavelmente atriz imprescindível para os próximos anos), aspirante a jornalista assombrosamente ingênua, quase uma fada vinda de um universo paralelo. Ele quer apresentá-la à cidade que adora, ela quer entrevistar um diretor de cinema cult e em crise artístico-existencial (Liev Schreiber). Por seu turno , Gatsby reencontra Chan ( Selena Gomez), irmã mais nova de ex-namorada. Um dia de chuva em Nova York bastará para que Ashleigh descubra novas emoções e Gatsby aprenda que só se vive uma vez. E com certeza nesta Nova York, banhada em esplendor pela iluminação de interiores dourados pelas mãos do mestre Vittorio Storaro.
Já faz um bom tempo que Allen não dá e nem pede explicações para seus filmes. Ele bem sabe a quem se dirige na plateia. Há que se acreditar nele. Ou não. É comovente comprovar como um cineasta pode se manter tão fiel a seus princípios e a seu estilo. Mesmo quando se sabe que ele não mais oferece obras revolucionárias como “Zelig”, monumentos dramáticos como “Crimes e Pecados” ou comédias dramáticas inesquecíveis como “Hannah e suas Irmãs” ou ícones como “Manhattan”: todos eles títulos maiúsculos de um artista de exceção. Comparado a estes emblemas que ele filmou, este “Rainy Day in New York” tem alguma coisa de protocolar, algo de burocrático e insuficiente para um diretor que já nos levou ao Olimpo do cinema. Mas Allen segue aí, imperturbável, obstinado, imortal, dando sempre a sensação de que respira e faz cinema, as duas coisas ao mesmo tempo.
Era o escritor Júlio Cortázar que dizia que, quando se dava um relógio de presente, ia junto “a necessidade de dar corda todos os dias, para que continuasse a ser um relógio”. Com ele vinha também a obsessão de manter a hora exata e o cuidado para não perdê-lo. O argentino pedia que, depois dar corda na máquina, ela ficasse bem presa ao pulso. Então é isso: é só esperar o momento certo. E então reaparece nosso relógio Allen. Na hora certa. Cansado ? Talvez, mas em plena liberdade. A nos recontar suas histórias, cheias de sarcasmos e puxões de orelha a quem de direito.
Em tempo: quase no encerramento, há um monólogo fugaz e final da veterana atriz Cherry Jones (a ricaça mãe de Gatsby). É a ultima personagem, que aparece na hora exata. Prodigiosa.