Aos 83 anos, Woody Allen não busca inventar nada. O cinema tem sido sua terapia, com um filme estreado a cada ano como regra geral e quase como norma de subsistência, desde o final da década de 1960. E nada melhor do que saber que o cineasta está de volta, depois de vencer uma disputa judicial com a Amazon, com qual tinha contrato para a realização de quatro longas. Há cerca de dois anos, a divisão de filmes da empresa (Amazon Studios) sequestrou “Um Dia de Chuva em Nova York”, já concluído, visando impedir sua distribuição e exibição por conta das repercussões midiáticas da acusação de assédio, apesar da absolvição do diretor pela justiça no processo movido por uma enraivecida esposa rejeitada, Mia Farrow – décadas mais tarde, o bebê de Rosemary revelou-se muito pior que a encomenda projetada pelo filme de Polanski...

“Um Dia de Chuva em Nova York”, em terceira semana no circuito local, é comédia romântica que agrada pelo minimalismo impressionista e irreal, pelo bom ritmo e pela fluidez dos diálogos. Allen leva um casal deliciosamente anacrônico a uma viagem de fim de semana a Nova York, viagem que se pretende romântica, mas que resultará mais que agitada.

Ele é Gatsby (batismo nada gratuito), rico, bonito, estudadamente afetado, amante daquela Big Apple old fashioned, das velhas canções e dos night clubs com pianista incluído : ela é Ashleigh (Elle Fanning, entregue de corpo e alma ao ritmo da comédia, provavelmente atriz imprescindível para os próximos anos), aspirante a jornalista assombrosamente ingênua, quase uma fada vinda de um universo paralelo. Ele quer apresentá-la à cidade que adora, ela quer entrevistar um diretor de cinema cult e em crise artístico-existencial (Liev Schreiber). Por seu turno , Gatsby reencontra Chan ( Selena Gomez), irmã mais nova de ex-namorada. Um dia de chuva em Nova York bastará para que Ashleigh descubra novas emoções e Gatsby aprenda que só se vive uma vez. E com certeza nesta Nova York, banhada em esplendor pela iluminação de interiores dourados pelas mãos do mestre Vittorio Storaro.

Filme traz um casal ao ritmo da comédia numa Nova York emoldurada na fotografia de  esplêndida luz
Filme traz um casal ao ritmo da comédia numa Nova York emoldurada na fotografia de esplêndida luz | Foto: Divulgação

Já faz um bom tempo que Allen não dá e nem pede explicações para seus filmes. Ele bem sabe a quem se dirige na plateia. Há que se acreditar nele. Ou não. É comovente comprovar como um cineasta pode se manter tão fiel a seus princípios e a seu estilo. Mesmo quando se sabe que ele não mais oferece obras revolucionárias como “Zelig”, monumentos dramáticos como “Crimes e Pecados” ou comédias dramáticas inesquecíveis como “Hannah e suas Irmãs” ou ícones como “Manhattan”: todos eles títulos maiúsculos de um artista de exceção. Comparado a estes emblemas que ele filmou, este “Rainy Day in New York” tem alguma coisa de protocolar, algo de burocrático e insuficiente para um diretor que já nos levou ao Olimpo do cinema. Mas Allen segue aí, imperturbável, obstinado, imortal, dando sempre a sensação de que respira e faz cinema, as duas coisas ao mesmo tempo.

Era o escritor Júlio Cortázar que dizia que, quando se dava um relógio de presente, ia junto “a necessidade de dar corda todos os dias, para que continuasse a ser um relógio”. Com ele vinha também a obsessão de manter a hora exata e o cuidado para não perdê-lo. O argentino pedia que, depois dar corda na máquina, ela ficasse bem presa ao pulso. Então é isso: é só esperar o momento certo. E então reaparece nosso relógio Allen. Na hora certa. Cansado ? Talvez, mas em plena liberdade. A nos recontar suas histórias, cheias de sarcasmos e puxões de orelha a quem de direito.

Em tempo: quase no encerramento, há um monólogo fugaz e final da veterana atriz Cherry Jones (a ricaça mãe de Gatsby). É a ultima personagem, que aparece na hora exata. Prodigiosa.