Apesar de caótico em vários momentos e um tanto desordenado em outras passagens, “A Propósito de Nada” (título original estrategicamente dado pelo autor e desprezado pela editora brasileira Globo Livros) é obra contundente no que diz respeito às acusações de pedofilia que perseguem Woody Allen desde os anos 1990, embora sem apresentar qualquer vocação de prosopopeia defensivista. O livro chegou às livrarias dos Estados Unidos no momento da maior tormenta contra Woody Allen pelas acusações de abuso sexual que ele teria feito a Dylan Farrow, filha de Mia Farrow.

Sobre este assunto, claro, Allen se refere explicitamente nestas páginas. “Não gosto de ter dedicado tanto espaço à falsa acusação de que fui vitima”, escreve. Ele também faz um retrato devastador de Mia, a quem descreve como “manipuladora”, “mentirosa” e “desequilibrada”, alguém que “maltratava os filhos biológicos e adotava crianças como quem coleciona objetos extravagantes”. E com quem compartilhou treze anos de vida e de carreira profissional. De resto, WA foi inocentado por juízes da série de acusações que constavam do processo: não existiu qualquer indício ou prova determinante de que houve abuso a Dylan Farrow, segundo a denúncia orquestrada por Mia através de entrevista da filha à CBS. Submetido também ao detetor de mentiras, Allen saiu sem um arranhão nas respostas do interrogatório. Intimada a fazer o mesmo teste em juízo, Mia se recusou, fortalecendo a suspeita de que tudo não passou de conspiração de namorada rejeitada. Como se sabe, Allen está casado há 23 anos com Soon-Yi, filha adotiva de Mia Farrow, por quem WA se apaixonou quando a moça já tinha atingido a maioridade e com quem tem duas filhas.

Woody Allen: "Jamais me faltou comida, nem roupa, nem teto, no entanto consegui acabar inquieto, com medo, nervoso, com a compostura por um fio"
Woody Allen: "Jamais me faltou comida, nem roupa, nem teto, no entanto consegui acabar inquieto, com medo, nervoso, com a compostura por um fio" | Foto: Dylan Meiffret/ Nice Martin/Bestimage/Honopix/ Folhapress

Essas memórias foram marcadas pelo #MeToo, cujos efeitos foram sentidos na vida do cineasta: cancelamentos de contrato pela Amazon para a realização de filmes – e para quem filmava ininterruptamente desde 1981, a paralisação foi enorme. E o prejuízo moral incalculável. Allen dedica parágrafos pesados contra Mia, que surge retratada como resultado de um ambiente tóxico – a família Farrow: alcoolismo, drogas, antecedentes penais, suicídios, transtornos mentais e até um irmão na cadeia por abuso de menores. “A mim me assombrava que ela pudesse ter saído ilesa da loucura desse campo minado, e saído tão encantadora, empreendedora e agradável. Mas é certo que não saiu ilesa, e ainda mais certo que eu deveria ter estado mais atento”, escreve ele.

Há algo sombrio em Allen – incluindo o humor – e ao mesmo tempo genial. Sua complexidade o protege do previsível; o engrandece e o condena. Esse mesmo espírito livre mantém e protege a autobiografia de qualquer complacência e, portanto, acontece na linha de frente. “A Proposito de Nada” é uma jornada mais ou menos linear, embora às vezes fique confuso. Ele é tocado pelo humor natural de Woody Allen, que tem a deferência de não se levar muito a sério.

Seu perfil biográfico brilha mais pelas apreciações sobre si mesmo do que pelos dados que inclui. “Jamais me faltou comida, nem roupa, nem teto, jamais tive doença grave como pólio, naquela época endêmica. Era sadio, querido, muito atlético, sempre me escolhiam na hora de formar os times, jogava, corria e, no entanto, consegui acabar inquieto, com medo, nervoso, com a compostura por um fio, misantropo, claustrofóbico, isolado, amargo, carregado de pessimismo implacável. Algumas pessoas veem o copo meio vazio, outra o veem meio cheio. Eu sempre vi o caixão meio cheio.”

CULT E FETICHISTA

85 anos, 49 longas-metragens dirigidos (e boa parte por ele interpretados ). “Fazer filmes me agrada, mas não tenho a decisão e o empenho de Spielberg ou Scorsese”

Seu cinema – cult mas nunca pretensioso, louco e lúcido ao mesmo – se identifica graças aos temas fetichistas de Allen, os mesmos que estão inscritos no livro: mulheres, relacionamentos, infidelidades, morte, religião judaica, cinema , jazz, magia, psicanálise e sexo. Amante do humor dos irmãos Marx e de Bob Hope (uma das revelações surpreendentes – e decepcionante para muitos ), fortemente influenciado por Bergman e Federico Fellini, WA revê sua carreira sem muita complacência. Sobre sua extensa filmografia, tem apreciações muito criticas. Reconhece “Maridos e Esposas”(1992) como sua obra mais livre, mais arriscada, e “Tiros na Broadway”(1994) como uma comédia sem complexos. Apesar disso, assume perante o leitor que a única censura que pode fazer a si mesmo é que nunca realizou uma obra prima. “Tantos erros estúpidos compensados pela sorte. Meu maior arrependimento? que eu tinha milhões para fazer filmes com total liberdade, e nunca filmei um obra-prima”.

Mas curiosamente este livro, destinado a principio aos cinéfilos, não é um livro pra cinéfilos. WA não detalha, longe disso, o processo pelo qual passa de criança e jovem subjugado pelos filmes da Metro à formação gradual de uma cultura e uma formação cinematográfica adulta. Quase não evoca os grandes mestres do cinema americano e não explica a determinação e o propósito que o levaram a dirigir filmes. Conclui-se que foi o ato de escrever esquetes, stand-ups, texto cômicos para terceiros que o levaram ao cinema, principalmente a encomenda para escrever o roteiro de “What's New Pussycat” (1965), a quem dedica páginas divertidas, embora deplore o filme. A partir daí, como se diz, uma coisa levou à outra. Antes dessas estréia como roteirista, toda a descrição da descoberta do mundo do rádio, televisão, teatro e clubes é muito boa, já que também é um universo menos conhecido dos leitores brasileiros.

Por quase último mas não menos importante, uma palavra aos críticos. “Eles são como todos os profissionais. Alguns excelentes e alguns horríveis, enquanto a maioria está no meio: são trabalhadores que fazem o que devem fazer para ganhar seu pão. O bom dos filmes é que eles sempre ficam lá e sempre oferecem uma oportunidade a quem perdeu de vê-lo um dia: um critica pode descrevê-lo como obra prima incompreendida. Naturalmente, isso nunca aconteceu comigo”.

No geral, feitas as contas, Woody acha que teve uma vida maravilhosa. “Se eu morresse agora, não poderia reclamar. E muitas outras pessoas também não reclamariam.”

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. | Foto: Reprodução

Serviço:

A Propósito de Nada

Autor: Woody Allen

Tradução: Santiago Nazarian

Editora Globo

Preço: R$ 39,90