Há 20 anos o cinema iraniano impactava nos maiores festivais do mundo, e várias obras de exceção começaram a chegar a espectadores de todos os cantos. O mestre Abbas Kiarostami, falecido em 2016, foi o nome mais famoso desta 'nouvelle vague' asiática, mas junto com ele chegaram filmes de outro expoente, Jafar Panahi, que começou como seu assistente de direção. A Panahi se devem títulos admiráveis como “Balão Branco”, “Isto Não é Um Filme”, “O Espelho” e “O Círculo”, entre outros.

O cinema dele pouco a pouco foi revelando uma forte vertente política, a par de sua indiscutível maestria visual. Teve um preço, claro: a proibição de seus filmes na Republica Islâmica do Irã. Desde 2010, Panahi não pode fazer cinema. Uma sentença o condena a 20 anos de privação cinematográfica por propaganda contra o governo. Mas desde então, entre períodos de silêncio em prisão domiciliar, ele já dirigiu quatro filmes. O mais recente, “3 Faces”, de 2018, está a partir desta quinta (12), em exibição em Londrina no Cine Com-Tour/UEL, por aqui o único nicho possível para a circulação da alternatividade independente da filmografia do iraniano. Seu filme anterior, “Taxi Teerã”, ganhou o Urso de Ouro em Berlim em 2015.

É impossível colocar limites ou barreiras ao seu intento de fazer cinema. A censura a ele imposta nada mais fez do que aguçar seu engenho para conseguir contar histórias que sempre buscam camuflar, por razões óbvias, uma reflexão crítica sobre a sociedade de seu país. Neste “3 Faces” ele volta a fazer o que sabe e gosta, em processo de resistência. Despojado de todo elemento supérfluo e desnecessário, o filme abre com um vídeo gravado via celular. São a voz e a imagem de uma jovem do interior do Irã, em vias de se suicidar porque sua família não permitem que ela estude em Teerã para ser atriz. O diretor Panahi e Behnaz Jafari, famosa atriz iraniana de tevê e cinema (interpretando a si mesmos) recebem o vídeo desesperado e viajam até uma remota aldeia para tentar descobrir o que terá acontecido com a garota. O material é autêntico? Ela de fato se matou?

'3 Faces':  filme utiliza o suposto suicídio da jovem aspirante à atriz como premissa para retratar uma sociedade erguida sobre fortes restrições às mulheres
'3 Faces': filme utiliza o suposto suicídio da jovem aspirante à atriz como premissa para retratar uma sociedade erguida sobre fortes restrições às mulheres | Foto: Divulgação

Os dois, diretor e atriz, pouco a pouco acabam se envolvendo, e “3 Faces” se transforma num 'road movie' que percorre por um Irã rural para descobrir seus costumes e seu ancestral conservadorismo. Na simplicidade formal adotada, o filme ressalta o verdadeiramente importante da tradição cinematográfica iraniana: a comunicação e a paisagem. Da maneira mais sensível, Panahi vai revelando, através da gente daquela região montanhosa, as tradições, os pensamentos, a maneira de ver a vida. E assim vai revelando as ataduras sociais que obrigam o país a viver ancorado no passado, em suas próprias contradições. Um povo que recebe com festa e alegria uma atriz famosa, mas que nega que uma jovem de sua comunidade vá estudar interpretação e que ainda condena ao ostracismo uma atriz na terceira idade vivendo sozinha e segregada. São três gerações de mulheres representadas. Três exemplos de denúncia do machismo.

Mas Panahi evita adotar uma visão militante ou populista frente a estes temas cruciais, e prefere que as reflexões emanem da captação da realidade. É o cinema que combate mais a partir da inteligência do que do visceral, e é por isso que há espaço também para o humor. Este quarto filme que o cineasta rodou sem roteiro, na clandestinidade e de maneira mínima, com o apoio e a cumplicidade de lugares onde ele tem família, é o que mais claramente se distancia do foco de sua própria falta de liberdade artística para se concentrar em um corpo social inteiramente oprimido pela censura e opressão sistêmica. Especificamente, ele utiliza o suposto suicídio da jovem aspirante à atriz como mera premissa para retratar uma sociedade erguida sobre fortes restrições impostas às mulheres de todas as idades. E também para lembrar a perseguição que os artistas sofrem nela. Panahi reflete sobre isso com humanismo e com a recusa de fazer julgamentos, gerando no espectador um agradável sentimento de empatia. Sobre a ausência de roteiro: o filme levou o premio de melhor roteiro em Cannes-2018.

Porque, claro, não havia roteiro escrito, mas a estrutura do relato e a história contada são brilhantes. Mas talvez o mais interessante do filme é que o elemento que põe em funcionamento esta história de observação é uma ficção: o vídeo que Panahi e Behnaz recebem da jovem desesperada em busca de ajuda é um truque. Panahi está nos dizendo que o cinema e a imagem não apenas são o meio, mas o ponto de partida para nos aproximar da realidade.