“Ronda Noturna” se coloca na distância certa para lapidar os tormentos emocionais desses policiais e seus encargos: dilemas, fraquezas, comunicação não verbal, desconfiança, ética profissional e tentação de transgredir, tempo sufocante de espera, ponto sem volta
“Ronda Noturna” se coloca na distância certa para lapidar os tormentos emocionais desses policiais e seus encargos: dilemas, fraquezas, comunicação não verbal, desconfiança, ética profissional e tentação de transgredir, tempo sufocante de espera, ponto sem volta | Foto: Divulgação

"Sou um bom policial? Ou não?" "Não devíamos ter aberto o envelope". “E se ele morrer quando voltar ao seu país?”

Quando os exteriores uniformizados começam a apresentar fissuras, e os seres humanos sob esta fachada de obediência começam a emergir, é difícil saber o que se vai enfrentar. É nesta zona cinzenta específica – onde os problemas pessoais e profissionais se sobrepõem, e onde a centelha dos valores morais/individuais pode causar desconforto sob a couraça de um policial obediente – que a diretora Anne Fontaine se aventura com “Ronda Noturna/Police”, coprodução franco-belga-chinesa disponível no Telecine Premium.

Ela e sua co-roteirista Claire Barré fazem uma imersão de 24 horas no coração de uma delegacia de polícia parisiense, tendo como um dos panos de fundo o cenário de imigrantes ilegais detidos ou sendo escoltados de volta a seus países.

Imersão arriscada, levando-se em conta os incidentes envolvendo imprudência e brutalidade policial ocorridas na França em 2019 (o filme é de 2020). Mas Fontaine, que é veterana de talento e respeito (“Nathalie X”, “Agnus Dei”, “Coco Antes de Chanel”, “Gema Bovery – A Vida Imita a Arte”, “Branca Como a Neve”) demonstra novamente aguçado senso daquilo que é essencial: uma abordagem eficaz em relação à mise-en-scène e à estrutura narrativa, sua representação organizada e confiável do trabalho policial básico e a condução de seu excelente trio de atores protagonistas.

E mais: notável ainda como ela caminha sobre a linha tênue que separa o cinema de autor e aquele mais agradável ao grande público.

Baseado no romance homônimo de Hugo Boris, a história de “Police” começa com uma hábil introdução dos três personagens policiais do filme, retratando um mesmo dia sob três pontos de vista diferentes. Virginie (Virginie Efira) está passando por uma crise existencial, não ama mais o marido e vive sob tensão permanente entre o trabalho estressante e o filho bebê que há 18 meses não a deixa dormir. Ela também acaba de descobrir nova gravidez, da qual quer se livrar. Seu colega Aristide (Omar Sy, o Arsène Lupin da série recente) acaba de saber que é o pai do filho indesejado de Virginie, e também guarda fissuras psicológicas por trás da fachada de um individuo brincalhão.

O terceiro é o amargurado Erik (Grégory Gadebois, excelente), lutando contra o alcoolismo e vivendo uma relação caótica temperada por agressividade e emoções.

Lidar com a violência doméstica (mulher agredida e receosa/arrependida do BO; mãe que excedeu o castigo e mata o próprio filho para acalmá-lo) , reprimir violentas manifestações de rua...Em sua lida profissional diária, esses policiais devem observar as profundezas da miséria humana – o tipo de coisa difícil para se manter a distancia, oscilando entre “não sou um herói” e “não estamos aqui para fazer trabalhos de caridade”.

E quando o trio se voluntaria para conduzir ao aeroporto um imigrante enigmático destinado à deportação (Payman Maadi), essas incontáveis ​​tensões acumuladas chegam ao limite no carro ao longo do trajeto, pois parece que "se este homem voltar para casa, para seu país, ele vai ser morto" ...

Retrato dinâmico e estilizado, que mistura com sucesso uma série de questões por meio da alquimia entre realismo e impressionismo, “Ronda Noturna” se coloca na distância certa para lapidar os tormentos emocionais desses policiais e seus encargos: dilemas, fraquezas, comunicação não verbal, desconfiança, ética profissional e tentação de transgredir, tempo sufocante de espera, ponto sem volta.

... É um conjunto complexo, bem controlado por Anne Fontaine (e com a colaboração de Yves Angelo à frente de fotografia) até a reta final, onde o filme quase perde credibilidade ao forçar uma nota de otimismo. O que provavelmente foi uma concessão ao cinema popular.

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