Fechadas por decreto, em boa parte do mundo. Sem discussão. Se é necessário, é necessário. As salas de cinema, sem estreias, estão agora ainda mais escuras. Por precaução, possíveis focos de imediata multiplicação estão proibidos ao público. Neste momento, esta é a única censura aceitável, e se ela existe é porque é necessária.

O mestre americano do terror literário, H.P. Lovecraft, estava convencido de que o mais intenso de todos os medos era o medo do desconhecido. Medo que pode vir da imaginação ficcional que criou o fantástico e o terror, tanto literário como cinematográfico. Mas o medo também surge da realidade palpável, aquela realidade que parte não de mundos obscuros e inacessíveis ao nosso conhecimento. Pelo contrário, ela surge de fatos reais, concretos e tangíveis. Longe de ser lenda urbana fantástica ou fruto do imaginário de viés apocalíptico, é a mais ameaçadora realidade urbana, em toda sua profundidade com contornos inequívocos de terror.

Com a ameaça do novo coronavírus, cinemas têm salas vazias, a opção para o espectador é ver filmes em casa
Com a ameaça do novo coronavírus, cinemas têm salas vazias, a opção para o espectador é ver filmes em casa | Foto: iStock

A população não está pensando o coronavírus – COVID-19, para efeito apelativo de título de filme de terror – como um argumento capaz de levar multidões aos cinemas para curtir uma ficção arrepiante, com todos seus desdobramentos angustiantes, agressivos, intimidadores, premonitórios. Ela, a população, está vivendo o coronavirus. Neste momento, ela não está mais numa sala de projeção, assustada por estímulos emocionais insólitos e intensos, gozando de um privilégio porque, a partir de sua poltrona, se sente psicologicamente gratificado, a salvo, e por isso pode gozar como voyeur da crueldade exercida por pessoas ou patologias (na tela), sabendo que é uma fabulação capaz de suprimir qualquer sentimento de culpa ou responsabilidade.

A situação se inverte. O horror mostrado em toda sua malignidade, mais ou menos intenso a depender do individuo espectador, não está mais aqui e agora, neste momento, num único retângulo de tela, mas na paisagem real, aquela que se descortina à saída para as ruas, para as escolas, nos transportes, nas aglomerações. O filme de horror sempre, na história do cinema, surgiu em sua melhor forma nos momentos de intensa aflição da humanidade, ou provocados pelos grandes conflitos bélicos, ou pelas depressões da economia. Sempre tendendo a minimizar os problemas menores da vida real, transformando em palatável (através da evasão) a realidade externa, reforçando o sentimento de segurança para o espectador (a população).

Talvez o motivo maior que, desde os primórdios das projeções, levou o público aos cinemas tenha sido de fato a magia da sala escura. A magia de entrar e usufruir em um estado onírico, uma espécie de processo de distanciamento psicológico da realidade cotidiana. E isto é que liga intimamente o espectador ao cinema de terror. E ao cinema “de medo”. Da fuga para a irrealidade do incrível, fantástico, extraordinário e do retorno desta para o real: isto é uma jornada e tanto. Mas, e quando falta o apelo da ficção, quando se suprime o sonho e se tem apenas o duro retrato de um mundo real de incertezas e temores? Resta à humanidade uma tarefa penosa, árdua, difícil, mas não impossível: transformar aquela irmandade cúmplice e invisível das salas escuras em corrente de solidariedade à luz do dia. É hora de esquecer a ficção e tentar viver a realidade da melhor maneira possível