Talvez uma das maiores complicações (há outras, muitas outras) no momento em que se aborda o tema da internet e as redes sociais – Por que não nos dizem que são tóxicas? Quem de fato as controla? Por que são substâncias tão aditivas? Elas realmente estão transformando o mundo como nós o conhecíamos? – seja conseguir explicar com clareza seu funcionamento e suas consequências. Fazer com que seja compreensível para aquele usuário médio que não entende o que há de errado em postar uma foto no Facebook, assistir os vídeos recomendados pelo Youtube ou passar horas transmitindo estórias no Instagram.

Esta é precisamente uma das virtudes de “O Dilema das Redes”, o docudrama Netflix (que ironia!) no momento pandemizando as plateias domésticas mundo afora. Um filme que consegue, como poucos , mostrar a verdadeira cara das redes sociais sem paternalismos e munido de quantidade respeitável de informações necessárias. E de advertências de resto muito úteis. O mito de que o celular “escuta” tudo o que falamos pode ser só isso mesmo, mito, mas a origem da paranoia é muito real, como explica muito bem “O Dilema das Redes”: todo clique, todo “curtir”, toda busca online passa a fazer parte de um perfil virtual que algoritmos do Google, Facebook, Twitter e outros aplicativos e sistemas utilizam para oferecer de acordo com o gosto do usuário. E publicidade, muita publicidade.

"O Dilema das Redes": filme que consegue, como poucos , mostrar a verdadeira cara das redes sociais sem paternalismos e munido de quantidade respeitável de informações
"O Dilema das Redes": filme que consegue, como poucos , mostrar a verdadeira cara das redes sociais sem paternalismos e munido de quantidade respeitável de informações | Foto: Netflix/ Divulgação

“As únicas áreas em que o consumidor é chamado de ‘usuário’ são as drogas ilegais e o software”, informa em dado momento o filme de Jeff Orlowski, que chegou ao streaming depois de uma passagem em janeiro pelo Festival de Sundance. E chegou ligeiramente reeditado para incluir algumas cenas ligadas ao Covid-19. Aliás, o título original, “The Social Dilemma” é mais ambíguo (e por isso melhor), referindo-se, é claro, às redes onipresentes mas também à sociedade como um todo.

E nem poderia ser diferente. O que muitos entrevistados apontam – e este é o lado mais forte do documento –, vários deles ex-funcionários em cargos hierárquicos, é que as sociedades mudaram radicalmente desde a explosão digital. E que o verdadeiro impacto da coleta de dados, preferências e gostos guardados nas redes dos computadores mais poderosos do mundo ainda está para ser visto. O futuro é distópico? “Não poderíamos saber que o polegar para cima, pensado como algo positivo, poderia gerar uma compulsão viciante”, diz um dos responsáveis pela criação do Facebook. O uso constante das redes facilita e/ou melhora tendências depressivas de seus usuários?

Vicios digitais, a proliferação de noticias falsas, a crescente polarização politica levada a extremos nunca vistos antes são outras questões postas e analisadas em detalhe pelo filme, sempre pressionando o espectador e de forma desesperançada. O roteiro se ressente da ausencia de alguma voz que coloque as coisas ligeiramente diferentes. E o que o filme não precisava, definitivamente, era da linha ficcional com atores, débil e reducionista do conjunto de inquietudes, reduzindo a potência da mensagem e aportando muito pouco ao debate.

Apesar do deslize, Oslowski consegue o principal: que o espectador reflita e acione vários alarmes. Ou acaso a explosão de novos adeptos das teorias terraplanistas teria existido sem as conexões visuais? E o que dizer da tribo dos antivacinas? A lamentável visão de grupos de pessoas danificando torres de sinal 5G por uma suposta relação com a atual pandemia é outro exemplo do pior cenário colocado na narrativa.

O bom e sempre presente Arthur C. Clarke resume as tristes verdades contidas num filme a uma frase lapidar: “Qualquer tecnologia suficientemente avançada é indistinguível da magia”. Magia e manipulação: tudo a ver com a barbárie tecnológica implantada neste planeta. Esférico, como sempre. Ainda bem.