Imagem ilustrativa da imagem Pedofilia e fantasmas
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Tema complexo e com espaço cada vez maior no cinema contemporâneo, a pedofilia nem sempre oferece na tela resultados (o tom, a moral) com resolução absolutamente satisfatória. O assunto se converteu em epidemia internacional, e as lentes atentas de diretores de todas as partes têm se dirigido à exploração do comportamento obscuro da mente humana para falar de quem, em sua vida cotidiana, dá a impressão de ser uma pessoa normal e até amigável, como costumam ser muitos pedófilos dos quais ninguém suspeita. Mas como se pode realizar um filme com temática tão cruel e até incômoda, e ao mesmo tempo se evitar a sordidez que tem origem no conflito ?

Uma mulher e um homem, Andréa Bescond e Eric Metayer, estão por trás das câmeras em “Inocência Roubada”, em lançamento a partir de hoje em uma única sala na cidade. Mas a figura da mulher tem aqui espaço preponderante. O drama “Les Chatouilles” (As Cócegas, em tradução literal), ganhador de dois prêmios César em 2018 e integrante do recente Festival Varilux do Cinema Francês, , nasceu como obra teatral tristemente autobiográfica de autoria da codiretora do filme, Andréa Bescond, e foi por ela mesma adaptada para o cinema. Apesar de alguma instabilidade dramatúrgica, “Inocência Roubada” é um relato carregado de vitalidade e esperança.

O filme descreve a existência cotidiana de Odette, menina oito anos de vida aparentemente feliz: gosta de dançar, desenhar e de se divertir. Mas nessa lida diária seus pais não se atentam muito dela. E desse descuido se aproveita um amigo da família, que passa a se ocupar dela com uma brincadeira de “fazer cócegas”. O abuso, que prossegue durante muitos anos, terá lógicas consequências na protagonista quando, já adulta, se dedicará à dança e às tentativas de reconstruir – com ajuda psicológica – seu passado e seus traumas. A culpa familiar não tardará a emergir. Mas é preciso seguir adiante, ainda que a violação a persiga e atormente.

Deste ciclo infernal Odette espera escapar estudando no Conservatório Nacional de Dança de Paris, mas os abusos continuam até que ela cresça e seu predador perca o interesse. Mas o segredo será mantido durante muito tempo. Um silêncio com consequências para a mulher e a bailarina profissional (a própria Andréa Bescond), manifestando-se em violência explosiva, tentativas de escapismo e no profundo desassossego causado pelas palavras que escapam de maneira gradual até o ponto de revelar a verdade a seus pais e provocar um encontro com seu antigo abusador.

“Inocência Roubada” corria o risco de um grande tropeço por sua forma (o ir e e vir constante entre a vida adulta da protagonista e o período traumático, com versões imaginadas do que poderia ter ocorrido, tudo através do prisma da psicoterapia), mas há uma genuína comoção e uma selvagem energia de sua diretora e interprete, neste exercício de catarse-quase-exorcismo.