Imagem ilustrativa da imagem Outro Allen de sabor refinado
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É um filme cem por cento Allen, seja no romantismo que não se resolve, seja no anedotário judeu



Não que seja uma obra-prima. Seria entediante para ele realizar uma por ano, sua média de produção (47 filmes como diretor, em cinco décadas), e mesmo para nós, espectadores fieis. A cota de perfeições woodyalianas é pequena – "Annie Hall", "Manhattan", "A Rosa Púrpura do Cairo", "Crimes e Pecados", "Maridos e Esposas", "Zelig", talvez "Match Point". Mas embora distante (não muito, não muito...) desses títulos irretocáveis, o "Cafe Society" que estreia hoje em salas de todo o Brasil e que há três meses teve o privilégio (ou seria o contrário ?), fora de concurso e em alto astral, de abrir o Festival de Cannes, é um dos filmes mais desfrutáveis da safra mais recente do diretor. Alguém pode dizer, à saída da projeção, que viu mais do mesmo. Em boa parte é verdade. Mas como se trata de Woody Allen, isto é lugar comum preguiçoso, reducionista, empobrecedor e portanto sem valia. O filme é muito bom, e o que se assiste é mais um (golpe de mestre) do mesmo (gênio de sempre). Aos 80...
O filme é uma homenagem nostálgica à Hollywood dos anos 1930. Nesta viagem no tempo, o cineasta narra aventuras e desventuras sentimentais e familiares de um jovem nova-iorquino que tenta a chance na Los Angeles começando a viver como meca do cinema, aquela da idade de ouro. Mas Woody não se contenta com a Califórnia, e reedita também seu amor incondicional pelo Brooklyn natal e sua querida Manhattan. Jesse Eisenberg, Kristen Stewart e Steve Carrell estão à frente do elenco do filme, o mais didático e acabado exemplo de comédia agridoce em muitos anos.
O romântico e sinuoso "Cafe Society" oferece ao espectador vários focos de nostalgia. De saída, retraça o perfil da Hollywood daquele período, trabalhado com extrema acuidade visual pelo diretor de fotografia Vittorio Storaro. São luzes cálidas (predomina o tom sépia, um dourado escuro) iluminando rostos e ambientes, o mesmo recurso que os irmãos Coen utilizaram há 25 anos em "Barton Fink – Delírios e Hollywood" e agora em "Ave, César", recentemente exibido em Londrina. Por meio de elegantes planos-sequência, Storaro obtém uma espécie de dança paralela de luzes e sombras que sublinham um dos temas principais do filme: a natureza esquiva do desejo, a vida afetiva como um claro-escuro de complicada resolução.
O personagem de Jesse Eisenberg se apaixona pelo de Kristen Stewart enquanto ela está ligada a um homem casado e mais velho, aliás tio do rapaz (Carrell). Os atores exercitam suas químicas com destreza. A atriz pode não ter (ainda) um repertório invejável de recursos cômicos e dramáticos, mas encarna com desenvoltura a garota enigmática, volátil em suas emoções e convincente em seus rasgos de amargura. De sua parte, o personagem Jesse Eisenberg-alter ego de Allen logo de início tem problemas como o jovem naive que cai de amores, embora se redima na segunda parte, quando, agora totalmente adulto, reflete sobre o amadurecimento de sua paixão juvenil.
Dias desses, em conversa a respeito das derradeiras cenas do drama "Truman", comentei sobre a importância de uma boa resolução, um bom fecho para um filme, qualquer filme – mas especialmente aqueles que de fato importam. Sem cometer spoiller: a maravilhosa sequência final de "Café Society" é desses momentos não muito frequentes no cinema que marcam, sem deixar dúvida, o limite do território onde habitam mestres consumados daqueles que não saberão jamais o segredo, os eternos aprendizes. Neste instante, o roteiro de Allen e a colaboração vital do iluminador Storaro – que funde em superposição os rostos melancólicos dos personagens distantes – conseguem a proeza de captar a fugacidade dos sentimentos. E a eternidade da nostalgia...
É um filme cem por cento Allen, seja no romantismo que não se resolve pela via mais fácil, seja no anedotário judeu, seja no referencial ao cinema de gangster ou à trilha sonora encharcada pelo melhor jazz. Ele está sempre a reciclar seu próprio universo temático, dando o sabor da novidade – e não esquecendo a pincelada moral ou a crise existencial, sintetizada na frase "a vida é uma comédia, escrita por um ator sádico". Mais Allen impossível.