Em momentos de turbulência, o cinema, como outras artes e formas de expressão da alma humana, destaca-se como um cronista de sua época. A aguda crise migratória que assola o mundo ocidental há tempos encontrou uma resposta clara e forte na forma de filmes, abarrotando festivais internacionais e traçando o diagnóstico do atual estado do mundo. Uma época que recordaremos como os anos em que as cinematografias mundiais reagiram com urgência diante de uma das maiores crises humanitárias deste início de século.

Neste contexto, e dada a radicalização de posições em todos os polos do globo, olhamos para trás para repassar as reações do cinema diante do que foi, sem dúvida, o momento mais tenebroso da nossa história como cidadãos do mundo. Refiro-me, naturalmente, ao surgimento e proliferação de regimes nazifascistas que semearam ódio, discriminação e delação em um estágio generalizado de luta pela sobrevivência em face do maior genocídio do século passado.

A essa altura, podemos concluir que o cinema abordou o regime nazista de todos os ângulos possíveis. No entanto, filmes focados na Segunda Guerra Mundial e no Holocausto ainda são realizados como uma espécie de método recorrente de apelar para as propriedades terapêuticas do cinema como preservação da memória histórica.

A disponibilização recente (nas salas, antes da pandemia, e logo em seguida via streaming) de títulos como “Nunca Deixe de Lembrar”, “Uma Vida Oculta”, “Aqueles que Ficaram” e “Jojo Rabbit” mostra ainda que filmes sobre o nazismo serão ainda por muito tempo terreno fértil para abordagens não convencionais, lidando com a questão da culpa coletiva, da punição, do arrependimento, da vergonha. Ou filmes de um complicado subgênero, o da comédia.

Neste último caso, pelas mãos de um cineasta com talento e sensibilidade, o neozelandês Taika Waititi, capaz de gerar momentos de humor evitando recorrer a piadas óbvias ou clássicas sobre nazis e também capaz de estabelecer grande empatia com seus personagens. Pouco ou nada conhecido no Brasil – seus filmes precedentes, bem razoáveis, são “O Que Fazemos nas Sombras” (três vampiros banais e os problemas comuns na rotina diária deles), “Uma Fuga para a Liberdade” (rito de passagem entre rude e amável de um adolescente) e “Thor: Ragnarok” (simpática incursão no universo Marvel) –, Waititi mantém em “Jojo Rabbit” os códigos de humor destes três títulos, mas a esta trilogia se soma um contexto tão amplo como problemático: o nazismo, o antissemitismo e o Holocausto. E a questão imperativa: poderia o humor encontrar um caminho e se impor como linguagem narrativa sem neutralizar esta paisagem brutal?

O filme, exibido em Londrina em fevereiro, pouco antes do fechamento das salas, foi lançado no canal pago Telecine Premium no ultimo sábado. “Jojo...” é a história do garoto homônimo de 10 anos (Roman Griffin Davis), membro da juventude hitlerista no último ano da Segunda Guerra Mundial. Nazistinha fanático, mas fofo (sic), tem como amigo imaginário o próprio Führer (interpretado pelo próprio diretor ), que lhe dá conselhos absurdos. Ele se apaixona pela garota judia que sua mãe (Scarlett Johanson) está escondendo em casa.

O filme "JoJo Rabbit" agora foi lançado no canal pago Telecine  Premium com grande sucesso de público
O filme "JoJo Rabbit" agora foi lançado no canal pago Telecine Premium com grande sucesso de público | Foto: Reprodução

Logo de saída, o filme dá o tom de sua proposta, meio sátira, meio nonsense e humor ácido – embora próximo de esquetes de programas televisivos. A abordagem é atrevida e corajosa, e funciona melhor quando é mais selvagem e sem preconceitos do que quando tenta, especialmente na ultima meia hora, ser sentimental e moderada. E aí o filme tem um problema, e não é o humor. É quando “Jojo Rabitt” toca em temas como medo, suspense, dor e tragédia que o terreno fica movediço. Exatamente como aquele fiasco sentimental de Roberto Benigni, “A Vida é Bela”: a comédia emocional sobre temas como o Holocausto é sempre traiçoeira, propicia à exploração oportunista de um evento com tais dimensões trágicas. Por sorte, mesmo sem ser brilhante Waititi supera Benigni em dois pontos fundamentais e salva seu filme: seu senso de humor muito mais aguçado e eficaz (mais inteligente, por certo), e a sagacidade para usá-lo quando o filme ameaça deslizra pelo fio da navalha do melodrama lacrimoso.

* Neste domingo, excepcionalmente, publicamos a coluna O CINÉFILO FIEL que sai às quintas.