Uma rápida espiada no cardápio de ofertas de séries nórdicas (Dinamarca, Finlândia, Islândia, Noruega e Suécia), de natureza policial, remete para vários títulos interessantes. E de interesse, nenhuma dúvida. Mas se você, confinado emérito, cinéfilo atento e de memória calibrada, der uma boa olhada por cima do ombro até encontrar os anos finais da primeira década do século vai obrigatoriamente esbarrar em título importante e seminal. O mesmo título de um, aliás dois longas-metragens com o mesmo nome que a atual geração blogueira/tiktakeana deve chamar de “influencers”.

E vai se deparar com uma investigação angustiosa em uma Suécia de passado nebuloso, colocada sob a forma de sombrio thriller de suspense e ação: “Millenium: Os Homens que Não Amavam as Mulheres”, baseado na trilogia literária escrita pelo jornalista Stieg Larsson. Os protagonistas da novela são um obstinado jornalista investigativo dono da revista Millenium e em busca de credibilidade, e uma hacker autônoma, brilhante e socialmente inadaptada. São eles Mikael Blomkvist e Lisbeth Salander. Eleitos por milhões de leitores apaixonados pelo extenso relato policial “Millenium” escrito por Karl Stig-Erland Larsson (falecido em 2004, aos 50, e antes de ver a explosão de vendas de sua trilogia), profissional justamente famoso por sua luta contra a extrema direita, o racismo e o sexismo.

Noomi Rapace e Rooney Mara: musas das séries nórdicas de crime e mistério
Noomi Rapace e Rooney Mara: musas das séries nórdicas de crime e mistério | Foto: Reprodução

O primeiro volume de “Millenium”, o que leva como subtítulo “Os Homens que Não Amavam as Mulheres”, inaugurou em 2009 , com a versão sueca de um ciclo de adaptações sob a direção do dinamarquês Nils Arden Oplev. Muito eficaz, o thriller soube manter o espectador cativo do alto nível de ansiedade – por 150 minutos – sem renunciar ao realismo de uma investigação que segue os passos de um serial killer que se misturam ao histórico nada abonador dos Vangler, tradicional família sueca de empreendedores. Temperados pelo fel nazista...

Em grande parte o roteiro foi fiel ao original, mas a opção lógica foi fixar atenção na dupla protagonista (a dark, gótica Lisbeth, interpretada com enorme humanidade marginal pela sueca Noomi Rapace, é legítima e radical precursora do movimento #Me Too), embora utilizando alguns atalhos que permitem ao longa ganhar em densidade, em vez de carregar nas tintas das intrigas e personagens secundários. Todos, no entanto, desenvolvidos com talento ao longo da novela.

Dois anos depois, a rarefeita Hollywood foi à velha Europa buscar oxigênio. Mas foi com as melhores intenções e competências, conduzidas por David Fincher, um dos poucos talentos da resistência. Ele refilmou a versão sueca, e fez isso muito bem, se rendendo à sinistra ambientação do original e encontrando outra musa de excentricidade justiceira nas feições de Rooney Mara. Preferencias territoriais e artísticas à parte, os dois títulos cumpriram suas metas: entretenimentos bem realizados com respectivos valores de produção, e ambições de comprometimento social igualmente bem sucedidas.

Mais do que simples conferência, as duas versões estão disponíveis para visão ou revisão nos streamings mais ou menos conhecidos. Ambas valem uma visita, como ótimos exemplares de temática criminal/de mistério. E na abordagem do pior cenário contemporâneo que se coloca para as mulheres vítimas de abusos e violência de toda ordem.