Entre as muitas coisas que perdemos em 2020 está nossa capacidade de ir – ou pelo menos ir com segurança – ao cinema. Essa perda em particular pode parecer relativamente pequena, mas nossa relação com os filmes não é. E nunca foi. Uma parte intrínseca desse relacionamento sempre foi a presença de outras pessoas, aquele entorno imediato do outro, do desconhecido – sentar em uma sala não necessariamente lotada, mas sentindo aquela simultaneidade de resposta que sempre, dando ou não nos dando conta, e de maneira misteriosamente transcendente, nos torna repentinamente íntimos de estranhos pela via da emoção compartilhada, ainda que sem rostos definidos.

Mas por outros canais, ou por outras fibras (fibra de herói, por que não ?), a resistência se faz. É preciso persistir, via streaming ou o que mais se oferecer. Assim como persistem as mulheres que estão a fazer o melhor cinema, na frente das câmeras, dirigidas por outras mulheres com aquela mesma fibra. E recorrendo sem tréguas ao tema do abuso que, infelizmente, não parece arrefecer os ânimos predadores de uma secular cultura machista da coisificação das mulheres.

Hoje e na próxima semana, o foco são filmes recentes e importantes (muito) em que são abordadas duas explorações da cultura do estupro, bem diferentes uma da outra, mas ambos os enfoques com inquestionável grau de eficácia. E, para quem prioriza, com interpretações que podem premiar com estatuetas duas atrizes de invulgar personalidade, com certeza multiplicando o interesse e o debate que ambas as histórias merecem. O primeiro é “The Assistant”, retrato de uma jovem que trabalha em ambiente tóxico-misógino, um escritório para assuntos de produção cinematográfica. E um estiloso thriller de vingança, “Promising Young Woman”.

Julia Garner é a protagonista de “A Assistente” num trabalho de poucas palavras e muita expressão corporal
Julia Garner é a protagonista de “A Assistente” num trabalho de poucas palavras e muita expressão corporal | Foto: Divulgação

Você pode até achar que “A Assistente” (Amazon Prime) é um filme com excessos de sutileza ou discriçao ou austeridade ou contenção. O fato é que não há obviedade na denúncia ou explicitude para ganhar aplauso fácil do pessoal mais fanatizado pelo #MeToo. Ficção de estreia da documentarista australiana Kitty Green, aqui o predator não é visto e nem tem nome, como por exemplo Harvey Weistein. Nem há cenas de abuso (apenas algumas comunicações telefônicas agressivas. Mas todos os detalhes apontam para ele e seu estilo de predação sexual. O que está visível e exposto é o machismo que prevalece e o forte grau de dominação sobre as mulheres no escritório de importante produtora de cinema, à qual acaba de chegar a novata Jane (Julia Garner, a Ruth da série “Ozark”, nada menos que perfeita naquele modus operandi que se exige dela), logo transformada em espécie de factotum de seu patrão tirânico: lava a louça, tira cópias na fotocopiadora, organiza viagens e hospedagens e ainda garante que todos comam e bebam aquilo que querem.

A ela compete atender às constantes reclamações da esposa do chefe e acompanhar uma nova e bela “assistente” a um luxuoso hotel, para onde o magnata do filme irá mais tarde... Quando Jane começa a ligar os pontos (não exatamente frouxos),é encorajada a fazer uma reclamação interna em local designado para isso. O resultado é sombrio, quase catastrófico. Para ela, alguma dúvida?

O filme se passa quase todo num só espaço físico de tempo (ma jornada de trabalho), e respirando a mesma dramaturgia. O que se sabe da personagem fora do trabalho é um quase nada – em meio a pressões e obrigações, machismos e vista grossa eela esquece o aniversário do pai. “A Assistente” é isso (e isso não é pouco, é um enorme muito), um drama que investiga , alerta, sintoniza um problema e uma prática que é muito mais difundida e tóxica que muitas empresas estão dispostas a admitir. E que, na selva do cinema, pode ser muito pior do que uma pandemia. A performance de Julia Garner é de poucas palavras, muito silêncio e imensa eloquência física, alguém com o sonho de deixar sua marca na indústria do cinema e da televisão. Essa peça artística, apesar de discreta e sutil, causa um poderoso impacto ao expor a teia de silencio que possibilitou /possibilita histórias contemporâneas de terror ao criar uma cultura em que a agressão e o assédio encobertos são apenas business as usual.