Selecionado para o Festival de Veneza de 2018, o longa francês “Amanda” - em segunda semana no circuito local - começa como um filme alegre e ligeiro, quase ao estilo clássico dos anos 1970, apresentando uma trama até um tanto frívola. Retrata uma vida ordinária, mas logo se converte em drama, e à medida que avança sente-se um peso maior.

David (Vincent Lacoste, muito bom) é um parisiense de 24 anos. Vive de atender turistas que alugam apartamentos e de serviços de jardineiro. Seu universo familiar é a mãe viúva e afetivamente distante que mora em Londres (Greta Schachi) e com quem não se encontra há vinte anos, e a relação com sua irmã Sandrine, mãe solteira de sua sobrinha Amanda (Isaure Multrier), de sete anos. No momento, David vive um romance com uma jovem pianista, Lena. Nesta primeira parte, o diretor Mikhaël Hers faz com que o espectador se sinta em zona de conforto.

'Amanda': filme de  Mikhaël Hers aborda com perspicácia as sequelas do terrorismo
'Amanda': filme de Mikhaël Hers aborda com perspicácia as sequelas do terrorismo | Foto: Divulgação

Mas esta vida razoavelmente amena do personagem vai mudar, e muito: um atentado terrorista em um parque de Paris mata Sandrine, entre outras vítimas, alterando para sempre a vida de David. Em meio ao caos e a dor, aturdido e deslocado, ele deverá se encarregar da pequena Amanda, agora totalmente sem meios emocionais e materiais para afrontar a tragédia da súbita e brutal orfandade. A partir deste momento, o filme vai construindo uma visão perspicaz sobre as sequelas causadas por um ataque terrorista. O tom do filme muda. Em vez de se ocupar com o choque, Hers opta por enfatizar os processos os processos pelos quais os familiares das vítimas devem passar, dos procedimentos burocráticos aos efeitos psicológicos sofridos por todos os envolvidos.

O foco passa então a Amanda e sua relação com David. De forma inteligente, a direção estabelece paralelos entre algumas histórias reais que foram estampadas no noticiário sobre os ataques terroristas na França, como a tensão e o medo provocados pelos fogos de artifícios. Mas se engana quem achar que o filme é sobre um atentado terrorista. O ataque tem a ver com violência que se vê e se experimenta hoje em dia. “Amanda” é muito mais sobre a perda de pontos de referência. Trata-se de mostrar como é a vida depois de um ataque, fixando-se nas consequências que o fato tem na vida das pessoas. Há uma cena brilhante que mostra a reação de David diante de uma mulher que foi repreendida por usar burka – é exemplo bem colocado de crítica social.

Por essas e por outras, creio que a narrativa trata mais da (sobre) vida privada dos personagens, e os efeitos que o atentado deixa em seu dia a dia. Além disso, o que se narra vai mais além da dimensão nacional, mostrando como as pessoas podem retomar o controle do espaço publico depois de um ataque.

Apesar de se manter à distância de um tom de agressividade, o filme é difícil porque fala de temas sociais e políticos, mas acima de tudo fala de reações individuais. E essas deixam a sensação de que “Amanda”, afinal , se inclina mais em direção à luz, à esperança.