Por legítima e incontestável unanimidade, William Shakespeare é reconhecido como o maior escritor em língua inglesa de todos os tempos. Sua linguagem, sua ampla percepção da natureza humana e o domínio absoluto de sua arte o conduziram a uma posição de clássica supremacia nos cânones literários. Assim, parece consequência natural que os artistas queiram continuamente transpor obras do escritor a outros meios, especialmente adaptações audiovisuais.

Ran, de Akira Kurosawa, é olhar majestoso e crítico nesta que é a melhor adaptação de “Rei Lear” (1985).
Ran, de Akira Kurosawa, é olhar majestoso e crítico nesta que é a melhor adaptação de “Rei Lear” (1985). | Foto: Reprodução

Mas quais foram as mais bem-sucedidas ? Quais as que renderam, com mais integridade, paixão e fidelidade, homenagens ao gênio ? Nenhuma dúvida: todo amante do escritor tem na memória um título (ou mais de um para chamar de seu). Assim, por inferência, e sem constrangimento, recorro ao privilégio da titularidade desta coluna e elejo meus dramas e comédias favoritos. Não se trata, obviamente, de imposição por convencimento monocrático, quase epidêmico nesses tempos, mas fruto de curtida subjetividade, de puro deleite áudio e visual, o reconhecimento de ofício e arte de pessoas inspiradas e talentosas que multiplicaram as delícias shakespearianas (e num certo sentido as reinventaram).

“A Tragédia de Hamlet, Príncipe da Dinamarca”, ou apenas “Hamlet”, como se imortalizou ao longo dos séculos. Aplausos para os grandes atores que levaram à tela este drama sobre traição, corrupção, incesto, vingança e questões morais. Mas eles dois, os mais populares e premiados intérpretes do personagem, Laurence Olivier e Kenneth Branagh, consideram o ator russo Innokenti Smoktunovski como o melhor. A direção desta obra prima (“Gámliet”, em russo) é de Grigori Kozintsev, com roteiro de Boris Pasternak e trilha de Shostakovski. Rigor estético e narrativo. Um luxo, em preto e branco, de 1964.

Lição de cinema de Kurosawa, Akira. E de como atualizar Shakespeare sem traí-lo. Vinte e oito anos depois de realizar o exuberante “Trono Manchado de Sangue” (1957) visão muito peculiar e magnífica do texto de “Macbeth”, o mestre japonês fez a derradeira obra prima de uma longa série delas: “Ran” (literalmente “Caos”) é olhar majestoso e crítico nesta que é a melhor adaptação de “Rei Lear” (1985).

"Hamlet" (1964), dirigida pelo russo Grigori Kozintsev, possui rigor estético e narrativo e é um luxo em preto e branco
"Hamlet" (1964), dirigida pelo russo Grigori Kozintsev, possui rigor estético e narrativo e é um luxo em preto e branco | Foto: Reprodução

Minha terceira tragédia de cabeceira é “Romeu e Julieta, obviamente a versão musical que foi da Verona imaginada pelo autor em 1591 aos palcos da Broadway como “West Side Story”/Amor, Sublime Amor” e daí para Hollywood, em 1961. Para terminar nos braços das plateias do mundo inteiro como um dos melhores musicais de todos os tempos. Esta ótima atualização do drama romântico é repleta de boa música, coreografias originais (Jerome Robbins, codiretor com Robert Wise) e canções inesquecíveis.

Há duas comédias shakespearianas que considero realizações cinematográficas além de satisfatórias. “Muito Barulho por Nada” (1993), de Kenneth Banagh, poderia até ter sido uma comédia musical, tal a leveza imprimida pelo diretor e ao espírito de farsa que predomina. Alegre, divertido, sem qualquer concessão ao mau humor e pleno de empatia, o filme tem grande e afinadíssimo elenco. E dando a Cesar o que é de Cesar, justiça seja feita ao operístico florentino (mas não aqui) Franco Zeffirelli. O que era de todo improvável aconteceu: ele colocou a impetuosa Katharina (Elizabeth Taylor) nos braços do patife Petruchio (Richard Burton) em “A Megera Domada” e a química extra set funcionou plenamente nas filmagens, nas bilheterias e com a crítica. A comédia é furiosamente engraçada e o momento encontrou a dupla de atores em pacífico interlúdio.