Em seu mais recente longa-metragem, o prolífico, polêmico e até o momento inédito (em Londrina) o diretor mexicano Julio Hernández Cordón (sete títulos, entre 2008 e 2017) se aproxima de um tema recorrente no cinema mexicano contemporâneo – a violência gerada pelo narcotráfico – , mas com um enfoque bem diferente daquele praticado por seus colegas.

Em “Compra-me um Revólver”, em lançamento a partir desta quinta (27) no circuito local, ele volta a um de seus assuntos favoritos, episódios definidores na vida de todo ser humano, de preferência a juventude. Só que agora ele recua ainda mais em busca de outro período fundacional: a infância, e as implicações de pertencer ao sexo feminino em um país misógino, anárquico e sangrento.

Em um futuro próximo, distópico e alarmantemente provável, em um lugar indefinido, os carteis do narcotráfico dissiparam todo sinal de autoridade, tomaram o poder e dirigem a nação. Neste inferno na terra, as mulheres escasseiam e a rarefação demográfica é um dado real. Como em “Filhos da Esperança”, de Alfonso Cuarón, e na série “The Handsmaid’s Tale”, ser mulher resulta mais perigoso que participar de um cartel. As poucas sobreviventes são sequestradas e capturadas pelos narco para seus próprios fins, inclusive desde meninas.

'Compra-me um Revólver": filme aborda um país misógino, anárquico e sangrento
'Compra-me um Revólver": filme aborda um país misógino, anárquico e sangrento | Foto: Divulgação

Neste cenário como pano de fundo, o espectador encontra Huck (são dela no filme o ponto de vista e a voz em off), uma menina que vive com seu pai em um trailer localizado ao lado de um campo de beisebol numa paisagem semidesértica. A garota oculta seu corpo sob uma roupa de menino e seu cabelo curto sob um boné de beisebol. O pai está machucado – o pé em carne viva por causa da corda que o aprisiona e o mantém próximo ao campo onde vive, “porque neste país tudo se rouba” (ele já perdeu a mulher e uma filha maior para os narco, que no entanto têm uma acordo para que a Huck permaneça com ele. Já não há números nem qualquer autoridade que leve em conta os desastres, os mortos, os crimes. Pai e filha são apenas um resto entre muitas famílias desmanteladas por uma guerra sem quartel.

O diretor Hernández Cordón expõe as vitimas mais vulneráveis do crime organizado: as crianças. Mostra a orfandade e sublima sua inocência – melhor escudo da resiliência – como arma para se proteger do horror. Huck, para minorar a ausência da mãe e afastar o cotidiano de horror, tem um trio de amigos que se escondem como podem (inclusive de maneiras muito criativas, como as camuflagens com a natureza desolada). O filme, sem apelar aos tópicos e elementos da FC, resulta numa espécie de épica apocalíptica de sobrevivência. As crianças tentam escapar do domínio dos adultos e viver de acordo com seus códigos e necessidades, mas são sempre subjugados, manietados e em muitos casos reprimidos e aprisionados por homens que perderam toda consideração e todos os traços de humanidade.

O filme evita o sadismo e o miserabilismo para concentrar-se em uma relação pai-filha e na dinâmica infantil, cercados por uma sociedade em decomposição. E faz isso com uma narrativa rigorosa, potente, e o que é melhor, sem incorrer em golpes baixos. E assume riscos, por exemplo, de romper com o realismo puro a favor de alguns momentos surrealista, tornando evidente este artificio (como na matança narco depois de uma festa de um cartel rival).

Contundente e desolador, “Compra-me um Revólver” é um desenho infernal, duro, doloroso e escabroso. Um cenário tristemente verídico sobre um país rasgado por drogas, massacres, tiroteios e armas. Muitas armas, milhares delas, ao alcance de qualquer um.