'Nós': uma família feliz vive uma noite de horror quando desconhecidos tentam se apoderar de suas identidades
'Nós': uma família feliz vive uma noite de horror quando desconhecidos tentam se apoderar de suas identidades | Foto: Divulgação

No dia 1º de abril, segunda feira próxima, deve estrear nos EUA pela rede CBS All Access – no Brasil será via Netflix, mas até o momento nenhuma confirmação – o renascimento de “The Twilight Zone/Além da Imaginação”, série pioneira da tevê mundial, cult indiscutível que foi transmitido entre 1958 e 1964 (a primeira e melhor temporada, com 156 episódios), criada e apresentada por Rod Serling e com episódios na maioria dirigidos por Stuart Rosenberg.

O programa, que teve enorme aceitação popular, abordava histórias com elementos sobrenaturais, ocorrências “além da imaginação” e inexplicáveis, como viagens no tempo, mundos paralelos, viagens espaciais, alienígenas, fantasmas, vampiros e outras situações misteriosas, ambientadas em um local denominado "Zona do Crepúsculo" ou "Twilight Zone", o título original da série.

Pois bem, quem vai apresentar ao mundo o novo seriado será o produtor, roteirista e diretor Jordan Peele, que assinou “Corra/Get Out” (2017) e agora este “Us/Nós”, no momento em exibição em qualquer país que tenha circuito exibidor. Nada mais conveniente que ele cite, em entrevista à revista inglesa “Sight and Sound” - que será publicada em maio - como inspiração para “Nós” o episódio 21 da antológica série, “Mirror Image”, com Vera Miles ameaçada por seu duplo. Pelo que ele mostrou até o momento, pode-se esperar bons momentos de criatividade.

Com prestígio em alta logo na estreia com “Get Out”, Jordan Peele teve um insight de pura cinefilia recuperando o 'dopplegänger' – segundo a lenda germânica, é um monstro ou ser fantástico que tem o dom de representar a cópia autêntica de uma pessoa que ele escolhe ou que passa a acompanhar, imitando em tudo essa pessoa, mesmo suas características interiores mais profundas.

De “Jekyll e Hyde” ao alter ego do “Dr. Caligari”, passando pelas gêmeas “Irmãs Diabólicas” de De Palma e pelos “Invasores de Corpos” (diversos diretores), o cinéfilo de carteirinha Peele recorre agora a essas versões sombrias para navegar em águas metafóricas, engenhosas o suficiente para refletir o peso dessas influências e já com experiência suficiente para criar um ensaio de mitologia própria.

É ambicioso, este afro-americano de Nova York que acaba de completar 40 anos. Com “Us”, Peele encarou o desafio de demonstrar que sua estreia na direção não foi um golpe de sorte de principiante. O êxito se baseou na conjunção de uma história imaginativa , uma poderosa metáfora social ao redor do racismo e uma direção seguira e inspirada. Seu segundo filme é bom e prova que ele sabe das coisas, muito especialmente das coisas boas do gênero. Está apto a contar histórias de medo. Mas cabem alguns reparos e questionamentos.

“Nós” exibe evidentes pontos de contato com “Corra”, estética e tematicamente. Se em “Corra” a trama girava em torno de um sociedade secreta dedicada a alienar pessoas de raça negra para transformá-las em escravos através de técnicas cirúrgicas e psicotrópicas, em “Nós” uma família feliz vive uma noite de horror quando quatro desconhecidos tentam se apoderar de suas identidades.

A partir de cenários paranoicos e do arquétipo do duplo, os dois filmes trabalham questões como a identidade, o livre arbítrio e as relações de poder. Por esses caminhos, ambas as tramas aproveitam as possibilidades para construir a crítica aos mecanismos sociais de seu país e, por que não qualquer nação ocidental.

Mas é preciso admitir: “Nós” funciona bem melhor quando vai fundo ao cinema de gênero; e com restrições quando deixa que a alegoria e a leitura política tomem conta do relato. A metáfora social poderia ser melhor polida; como está posta não trabalha exatamente com sutilezas, mostrando um mundo dividido - um em cima, outro em baixo: os originais felizes separados de suas cópias desafortunadas, Marx para iniciantes.

Outro ponto vulnerável é a necessidade irritante de que um dos personagens tenha que explicar (mais de uma vez) em voz alta aquilo que o espectador está em condições de imaginar por sua conta.

De qualquer forma, embora o resultado aqui seja menos fascinante e mais arrogante que “Corra !”, este “Nós” não deixa de ser valiosa incursão ao gênero do terror, que tem habituado o público a uma sucessão de formulas anódinas e muito desgastadas.

Confira o trailer:

Youtube/ Reprodução