A verdadeira arte sobrevive aos totalitarismos e nunca se rende ao conformismo, desde que o artista mantenha sua liberdade de perspectiva. Esta a síntese de um dos recados embutidos em “Nunca Deixe de Lembrar” (“Werk ohne Autor/Obra sem Autor”, título original e o mais adequado para o filme), terceiro trabalho do alemão Florian Henckel von Donnersmarck, que ano passado voltou à evidencia quase uma década após o decepcionante “O Turista” e doze anos depois da consagradora estreia do admirável “A Vida dos Outros”, Oscar de melhor estrangeiro – exibido em Londrina em 2008 no já saudoso Cine Com-Tour/UEL.

A ideia para a realização de “Nunca Deixe de Lembrar” (disponível em streaming na Looke Filmes) veio de um livro sobre o pintor Gerhard Richter, um dos mais famosos da Alemanha – o artista, hoje com 88 anos, contesta com veemência o conteúdo do filme e o acusa de distorcer fatos, o que torna a coisa mais condimentada, já que este trabalho, embora distante da originalidade de “A Vida dos Outros”, com certeza não é de se descartar pela janela. E von Donnersmarck, que sabe o que faz e como faz, busca a essência da arte na convulsa história alemã. Neste longo filme (às vezes longo demais: 189 minutos), há no entanto mais gratificações que decepções. Há muitas recompensas para o espectador. Como, por exemplo, descobrir como e por que um artista quer se manifestar, mesmo que a sociedade onde ele atua às vezes possa prejudicá-lo.

Lendo a biografia de Richter, o diretor ficou particularmente impressionado com um fato arrepiante que o artista nascido em Dresden descobriu em dado momento de sua vida. O pai da garota com quem ele se casou, Elizabeth (Paula Beer) era o médico da SS (Sebastian Koch) encarregado do programa de eutanásia (eliminação de doentes mentais e outros “imperfeitos”) do Terceiro Reich e responsável pela execução de uma tia querida de Richter, fato que ele obviamente nunca deixou de lembrar.

Imagem ilustrativa da imagem O confessionário vai ao divã

Apesar dos nomes mudados, o filme de fato conta a história desse artista (interpretado por Tom Schilling), do nazismo ao regime comunista na Alemanha Oriental, quando ele se cansa do realismo socialista e migra para o vanguardismo da metade ocidental do país. O caminho que percorre é o da própria história da arte – do classicismo ao conceitual, do expressionismo à arte pop – em uma existência que combina trauma coletivo e individual.

O roteiro, em voltas e reviravoltas, consegue capturar certa essência dos tempos sobre os quais se debruça, especialmente ao traçar o retrato da juventude da época. As contradições da sociedade alemã nos tempos do nazismo, com seu espirito humanista alterado pelo fascínio por Hitler, contribuem para a divisão do país no pós-guerra e para a confusão moral daquele período. Neste quadro, von Donnersmarck não consegue evitar a contaminação de seu psicodrama histórico por certo maniqueísmo e de alguma superficialidade dos personagens. E na paleta de cores da dramaturgia, faltam tons de cinza para equilibrar um painel que, em nível moral, parece dominado pelo branco da inocência juvenil e da integridade artística, e pelo preto do mal mais monstruoso, sem meios tons.

Os alemães, virtuosos em muitas áreas do conhecimento (entre elas o design de mobiliário), poderiam muito bem ter criado algum móvel que fosse meio confessionário, meio divã. Assim estariam perfilados, lado a lado diante da plateia, os traumas, culpas e pecados de sua história. Evidentemente seus autores seriam os principais investidores e consumidores desta peculiar peça de mobília, a julgar por este e mais algumas dezenas de títulos.

Porque eles, os autores, mesmo quando falta um aprofundamento mais teórico e sobra ambição, como no caso deste “Nunca Deixe de Lembrar”, sabem que não é necessário desviar o olhar do horror, mas sim capturá-lo em uma tela, seja de pintura , seja de cinema. É por isso que o filme surge também como reflexão sobre a relevância crucial do mistério das artes. De qualquer arte.