A sugestão para uma garimpagem sobre quando e como ocorreu esta ampla e constante relação entre livros e filmes no Brasil fica como dever de casa. E o #fiqueemcasa ainda promete novos e agitados episódios. Nesse viés espacio-temporal, a próxima visita subtemática terá como destino William Shakespeare – os números divergem, mas há cerca de 500 adaptações para o cinema !

O essencial em poucas palavras. Palavras substantivas. Essa a marca estilística de Graciliano Ramos, um dos nossos mais substanciais escribas, aquele habilidoso por excelência ao dizer o imprescindível em poucas palavras, sem derramar nada, o escritor que reescrevia seus livros várias vezes com o intuito de retirar deles o que era desnecessário. Desse cuidado resultou seu estilo conciso, enxuto, considerado exemplo de elegância e de elaboração. Em suas obras, entre elas “Vidas Secas” e “São Bernardo”, o substantivo sempre foi muito privilegiado, e o adjetivo remetido a segundo plano. Graças a essa forma, a crítica literária o consagrou como um dos expoentes das letras nacionais, e sua obra, considerada a melhor ficção produzida na segunda fase do Modernismo brasileiro, transcende o individual, passando pelo plano social e político e atingindo o plano universal.

O cinema e o escritor tiveram, num dado momento, a mais feliz das convergências. Em “Vidas Secas”, romance de 1938 narrado na terceira pessoa, o enfoque se dá sobre a realidade social dos personagens; o ponto de interesse é o homem, vinculado ao seu meio natural, no caso o sertão. Graciliano narrou, com pessimismo e crítica social, como vive o povo nordestino, suas dificuldades, sua luta pela sobrevivência. Quiseram os deuses que, vinte e cinco anos depois, um jovem diretor estreante, o paulistano Nelson Pereira dos Santos (também um dos fundadores do Cinema Novo), se entusiasmasse com o preciosismo da escrita naquele texto despojado e austero, já carregado de imagens, e sentenciasse anos mais tarde: “A obra literária já era um roteiro pronto!”

'Vidas Secas' foi adaptado para o cinema por Nelson Pereira dos Santos que viu no livro de Graciliano Ramos "um roteiro pronto"
'Vidas Secas' foi adaptado para o cinema por Nelson Pereira dos Santos que viu no livro de Graciliano Ramos "um roteiro pronto" | Foto: Reprodução

À esta composição subjetiva dos personagens do escritor Graciliano, o cineasta Pereira dos Santos ressaltou a carga de dramaticidade do texto com a ousadia estética das imagens. À sisudez das palavras precisas, a austeridade angustiante do preto e branco da caatinga. A sofisticação minimalista de Graciliano recebeu a “luz brasileira” (sem filtros, superexposta melhor para revelar o agreste calcinado pelo sol). Estavam na tela, afinal, crus e inteiros, os personagens do mais emblemático dos dramas rurais brasileiros: o analfabeto vaqueiro Fabiano (Átila Iório) sua mulher, Sinhá Vitória (Maria Ribeiro), o Menino mais velho, o Menino mais novo, a Cadela Baleia (a mais humana dos personagens) e um papagaio que só latia, porque era o único som que ouvia.

São Bernardo

Alguns personagens de Graciliano – como os já citados de “Vidas Secas” e Paulo Honório, de “São Bernardo”, estão entre os mais significativos da literatura brasileira do século 20, construídos em prosa simples e coloquial. A forma apurada do escritor, aquela que Pereira dos Santos encontrou como um “roteiro pronto”, também foi comprovada pelo cineasta Leon Hirszman, outro ícone do Cinema Novo. Hirzman filmou, em plena ditadura militar, o romance “São Bernardo” (1972). Com interpretação primorosa de Othon Bastos, como Paulo Honório, e de Isabel Ribeiro como Madalena, não é exagero afirmar que o filme repete a fortuna da adaptação de “Vidas Secas”, pois se tornou também uma obra prima do cinema brasileiro.

Othon Bastos e Isabel Ribeiro em 'São Bernardo'
Othon Bastos e Isabel Ribeiro em 'São Bernardo' | Foto: Reprodução

Num de seus inúmeros ensaios, o escritor e roteirista francês Jean-Claude Carriere (adaptações de “O Charme Discreto da Burguesia”, “A Insustentável Leveza do Ser”) escreveu : “Por que alguém iria querer contar a própria história? A única ambição do narrador é aparecer como alguém necessário”. A frase soa ainda mais verdadeira quando se trata se querer contar a própria história, caso do Paulo Honório de “São Bernardo”. O personagem conta a história de sua vida (é um dos romances do escritor na primeira pessoa) e conclui que ela é resultado de suas atitudes grosseiras. Depois de contar sua história, Paulo Honório pode parar e esperar a luz da vela se extinguir.

Tanto o livro quanto o filme mostram o embrutecimento, a coisificação do personagem. Realizado com orçamento baixíssimo, fracasso de público, bem e mal recebido pela crítica na mesma medida, o filme não se deixa enquadrar facilmente.

Paulo Honório usa uma linguagem agreste, súbita, seletiva, cortada. Limitação sobre a limitação, negação da negação, signo de signo, os movimentos da câmera de Leon Hirszman formam um peculiar modo de enunciação, ou seja, escolhem uma maneira – dentre muitas possíveis – muito própria de contar como Paulo Honório conta a própria história. A câmera é continuamente estática, lenta, demorada. Longos planos, poucos cortes, cenas à distância, raros closes. Súbito, velozmente, a câmera corre atrás de Paulo Honório, anunciando o momento decisivo. Dentre todas as outras, é a única cena de movimentos bruscos e velocidade acelerada. A partir desse momento, entendemos por que Paulo Honório precisa contar sua história. Aqui, Leon Hirszman nos conta a lição do mestre: como transformar limitações orçamentárias em cinema.