Nos labirintos da demência senil
“Meu Pai” é filme para nos alertar que estamos conectados uns aos outros e à nossa humanidade dolorosa
PUBLICAÇÃO
quinta-feira, 15 de abril de 2021
“Meu Pai” é filme para nos alertar que estamos conectados uns aos outros e à nossa humanidade dolorosa
Carlos Eduardo Lourenço Jorge / Especial para a Folha
Mais um título de peso na corrida para o Oscar do dia 25 já está disponível para o público online nas plataformas digitais (Google Play, iTunes, Sky Play, Vivo Play e NOW, aluguel ou compra) e por aquelas outras vias que todos sabem (ou fingem não saber). “The Father”, incompreensivelmente rebatizado no Brasil pela distribuidora Califórnia como “Meu Pai” (é o único país do mercado internacional onde o filme leva este título) é e será, daqui por diante, matéria de memória referencial sempre que se pretender debater a memória. E sua perda irremediável.
“The Father” nada mais é do que a história de um homem castigado pela perda de suas capacidades intelectuais e sociais – distúrbios nas células cerebrais que degeneram e morrem, determinando o constante declínio na memória e na função mental. Na verdade, uma correção: “nada mais é” não pretende minimizar a devastação causada pela demência, mas expressão simplista tentando uma tentativa de síntese do estado avançado da doença (Alzheimer). Este homem, Anthony, é remetido às profundezas do seu ser até ficar vazio, perdido, com a dor de não ter nenhuma dor do passado e, portanto, sem espelho (inteiro ou quebrado, que diferença faz ?) para se reconhecer.
Os personagens são um homem octogenário e sua filha vivendo num apartamento que de repente parece uma múltipla cela – é outro personagem, nenhuma dúvida. Uma família cheia de estranhos e uma vida que perde a noção de equilíbrio. A inteligência do diretor francês estreante Florian Zeller (autor da peça adaptada por ele e pelo inglês Christopher Hampton) consiste em colocar o filme como um hui clos com certeza um tanto cruel e às vezes com aparência de thriller. As lacunas que o esquecimento deixa na mente do protagonista são pistas falsas que desorientam, ao mesmo tempo que conduzem o olhar por um labirinto habitado por fantasmas da identidade (quem somos nós sem nossas recordações ?), da morte (por que custa tanto recordar o nascimento ou imaginar a possibilidade do nada ?) e da dúvida.
Zeller narra sua história de dentro para fora, lançando o espectador dentro do já citado labirinto de incertezas; ele (espectador) é colocado na posição ativa de tentar compreender o que ocorre, como se estivesse experimentando o que significa perder o próprio rumo. Uma maneira lúdica (não como diversão inócua) de tentar penetrar cinematograficamente o puzzle em que vai se transformando a mente do personagem. Zeller sabe que cinema não é teatro, e para isso procurou trabalhar cenograficamente o set da maneira menos teatral possível a fim de mostrar a confusão de uma pessoa, principalmente com a inclusão visual do apartamento-personagem e suas divisões.
A direção aposta na inteligência do espectador, não deixando nada muito fácil: é possível (e estimulante) dispor as peças à maneira de um quebra-cabeças, experimentar diferentes combinações para tentar perceber o que se passa entre aquelas quatro-muitas paredes. Quem é aquele que acaba de aparecer? Quem finge ser quem não? o espectador participa ativamente da elaboração da história, o que é uma singular e saudável maneira de construir e descontruir histórias semelhantes já contadas.
Em grande parte “The Father” aguça a razão do espectador, é frio e controlado em seu modo cerebral. Mas ao final há um filme que consegue transcender cada um dos lugares comuns dos quais se alimenta. E se volta há uma volta ao mesmo melodrama de sempre, mas de uma forma diferente. Isto se dá através de carnalidade de um ator que, para quem não sabia, é muito mais que um performer. O peso da memória de cada espectador ao ver Hopkins dar vida ao mais magnifico dos Hopkins acaba se tornando o enredo real. O filme entra num território de angústia para evoluir rumo às mais diversa emoções ate chegar o drama mais intimo deste personagem que está sendo derrotado pela demência senil.
E por isso o que na aparência poderia ter sido um conto sobre a velhice que está se estilhaçando – há um poema do argentino Jorge Luís Borge, “Cambridge”, que termina assim: “Somos nossa memória, somos esse quimérico museu de formas inconstantes. esse monte de espelhos partidos” – acaba sendo um belo ensaio emocionado sobre a dor causada por esquecer a dor.