“Meus amigos, lembrem-se disso: não há ervas daninhas ou homens maus. Existem apenas maus cultivadores". A frase de Victor Hugo, pinçada da novela clássica “Os Miseráveis”, é o crédito final do primeito longa de ficção de Ladj Ly, cineasta francês nascido no Mali. O filme, que ano passado dividiu o Prêmio Especial do Júri de Cannes com o brasileiro “Bacurau”, pode e deve muito ser visto – está disponível no Google Play e I-Tune-Apple TV – como um livre, explosivo e complementar comentário contemporâneo à obra-prima literária que, em meados do século XIX, retratou a desigualdade social e a miséria decorrente, enfatizando ainda o conflito do indivíduo em sua relação com o Estado através da arbitrária ação policial.

A história trata dos excluídos da periferia de Paris, este enorme e crescente território urbano que anseia (e cobra) com urgência a carteria de identidade de uma pátria da qual se sente suprimido.

Numa tarde quente do verão de 2014, essas pessoas se reuniram à sombra do Arco do Triunfo para comemorar a Copa do Mundo da Rússia vencida pelos franceses, num aparente congraçamento de gente de todas as raças e todas as condições sociais. Não esquecendo que, dez anos antes, em 2005, os mesmos subúrbios de onde vieram foram cenários de furiosas, violentas lutas que de algum modo recordavam aquelas batalhas de rua descritas por Hugo em “Os Miseráveis”. Tanto o escritor quanto o cineasta Ladj Ly trataram das mesmas coisas localizadas no bairro de Montfermeil; e apesar das diferenças históricas, pouco mudou para as classes desfavorecidas que não apenas são socialmente ignoradas como com frequência são vigiadas ou enjauladas como feras pela policia.

Imagem ilustrativa da imagem Liberdade, igualdade, fraternidade?

Durante uma ronda diurna da Brigada Anti-Crime, os veteranos Cris e Gwada, e o novato Stéphane (o protagonista principal, de certa forma ponto de equilíbrio e ponto de vista do espectador) patrulham o bairro marginal de Bosquets, subúrbio onde seguramente há mais negros e muçulmanos que em todo o resto da França. A vizinhança, que é “administrada” por uma espécie alternativa de prefeito “distrital”, foi expurgada da droga pelos Irmãos Muçulmanos, algo que não impede a polícia de estar atenta “à brutalidade do mundo que nos rodeia”. Neste ambiente permanentemente pesado, onde policiais cometem abusos de poder (Cris e Gwada), um filhote de leão, roubado de um circo de ciganos por um garoto reincidente, dá a partida para uma série de acontecimentos violentos provocados pelos policiais abusivos, que entretanto são registrados por um drone que pode incriminá-los. Começa aí uma onda de tensões e fricções...

Uma câmera ágil e este drone bem integrado à narrativa mesclam um realismo composto de pequenos toques da vida cotidiana e a cultura popular dos habitantes do bairro, sempre com ritmo intenso e potente energia visual. Ao mesmo tempo em que narra sua história, Ladj Ly serve como guia para cristãos brancos, pequenos burgueses progressistas, que farão críticas à policia e à presença precária do Estado; ou para reacionários que dirão que o problema é a imigração. O papel do policial Stéphane é o de mediador da polícia, alguém que busca redenção como o criminalista Vidocq, inspirador de Victor Hugo.

“Os Miseráveis” nos mergulha na realidade sem passar pelo thriller, e impõe o compromisso cinematográfico de tornar visíveis as nuances daquele entorno e de colocar sobre a mesa um profundo problema de representação na sociedade francesa, quando esses mesmos jovens periféricos de Bosquets são os primeiros, como o filme mostra no preâmbulo, a participar da felicidade coletiva de uma vitória no futebol dos Bleus, cantando a Marselhesa: “Allons enfants de la Patrie, le jour de gloire est arrivé! “

'Os Miseráveis' nos mergulha na realidade cultural que coloca o problema da representação das minorias na sociedade
'Os Miseráveis' nos mergulha na realidade cultural que coloca o problema da representação das minorias na sociedade | Foto: Divulgação

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