Foi o mestre por excelência das novelas de espionagem, tramas que construiu a partir de sua própria experiência. John Le Carré, o escritor britânico (pseudônimo de David John Moore Cornwell), morreu na Inglaterra no ultimo sábado (12) de uma pneumonia (nenhum vínculo com covid). Aos 89 anos, deixa um legado de livros de ficção nos quais revelou como poucos as tensões que afligiram o mundo durante a Guerra Fria, em obras como “O Espião que Veio do Frio” ou “A Casa da Rússia”. Em sua última novela, “Um Homem Decente”, Le Carré mais uma vez arremeteu contra o Brexit, tal como havia feito em alguns livros recentes. Ele foi sempre muito crítico em relação ao uso desmedido do poder por parte dos governantes, em especial da Inglaterra e dos Estados Unidos – é notavelmente exemplar sua duríssima reação à invasão dos EUA Iraque em 2003.

Longe do glamour das aventuras de James Bond de Ian Fleming ou das tramas mais bélicas/maniqueístas de Frederick Forsyth, os textos de Le Carré se especializaram em descrever o lado mais amargo da espionagem e os sacrifícios emocionais que esta atividade exigia e que considerava pouco ou nada recompensados. Durante seis décadas, John Le Carré dominou as listas de best-sellers e as principais páginas de resenha com sua obra monumental.

O Jardineiro Fiel, adaptada de um livro de John Le Carré para o cinema,  com direção de Fernando Meirelles, é uma das obras mais conhecidas
O Jardineiro Fiel, adaptada de um livro de John Le Carré para o cinema, com direção de Fernando Meirelles, é uma das obras mais conhecidas | Foto: Reprodução

Seu trabalho inicial para o MI15, sigla da Inteligência Inglesa, foi espionar grupos esquerdistas no Lincoln College de Oxford, em 1950, para detectar possíveis agentes soviéticos. Posteriormente, em 1956, se graduou em Oxford com o título de primeira classe em idiomas modernos. Em 1958, já oficial do agora MI16, dirigiu interrogatórios teve atividades mais secretas, como escutas telefônicas e roubos diversos. Em 1964 teve que abandonar a espionagem quando teve sua identidade revelada pelo agente duplo Kim Philby. E logo se converteu em um dos autores de língua inglesa mais aclamados pela critica, fama merecida com os 25 títulos, com ou sem a presença de seu histórico espião (meio alter ego) George Smiley. “Um bom escritor nada mais é do que alguém expert em descrever a si mesmo”, resumia quando entrevistado sobre as qualidades que definem os grandes novelistas.

NAS TELAS

E enfim o cinema. Tudo o que Le Carré escreveu foi material puramente cinematográfico. Tanto que não houve dificuldade para manter sua essência na transposição para a tela grande; as histórias de espiões do escritor sempre se mostraram como matéria- prima praticamente pronta para o cinema. E ainda que nem todas as adaptações não tivessem obtido o mesmo êxito, elas contaram com a presença de atores como Richard Burton, Sean Connery e Gary Oldman, entre outros.

“O Espião Que Veio do Frio”, 1965, além de primeiro êxito literário do autor, o filme se transformou em clássico do gênero, com Burton no melhor de sua forma. Um ano depois, “Chamada para um Morto”, de Sidney Lumet, mostrava Smiley na pele de James Mason, um filme multipremiado e fiel à marca registrada pessimista de Le Carré.

Depois vieram “A Garota do Tambor”, de 1984, mantendo o nível de interpretações, agora com Diane Keaton. Em 1990 foi a vez de “A Casa da Rússia”, Connery e Michelle Pfeifer, adaptação digna mas que não suportou o peso do tempo.

E então, em 2005, a melhor de todas as adaptações, e também uma das mais lembradas: “O Jardineiro Fiel”, com direção do brasileiro Fernando Meirelles – naquele momento totalmente consagrado mundo afora depois de “Cidade de Deus”.

Baseado no livro homônimo publicado em 2001 focado em intrigas internacionais da indústria farmacêutica, o filme participou da seleção oficial de Veneza e recolheu muitos prêmios em outros festivais – inclusive o Oscar de melhor atriz para Rachel Weisz. E também o filme concorreu ao Oscar na categoria principal.

A perene atração entre espionagem literária e cinematográfica foi explicada pelo próprio John Le Carré quando escreveu o roteiro para “O Alfaiate do Panamá” e acompanhou a estreia do filme no Festival de Berlim: “É possível que, com a queda da Cortina de Ferro, os espiões tenham perdido força na narrativa, mas ainda estão por aí. Sempre haverá espiões no mundo”, disse o escritor da época, para quem a única diferença é que hoje os espiões "não são movidos por ideais, mas por dinheiro."