Filme da Netflix traz anti-heróis para amar e odiar
"Eu Me Importo" está entre os filmes imperdíveis da temporada na plataforma digital
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quinta-feira, 11 de março de 2021
"Eu Me Importo" está entre os filmes imperdíveis da temporada na plataforma digital
Carlos Eduardo Lourenço Jorge
Fria, impiedosa, cínica, sociopata. Escolha um desses (des) qualificativos. Não. Melhor eleger todos, porque todos a vestem à perfeição. E embora ela tenha alguns inimigos entre aqueles que foram deixados de fora do negócio de roubar dinheiro dos idosos, no geral ela, Marla Greyson (Rosamund Pike, absolutamente mortífera com seu corte Channel escorrido adequado à amoralidade era Trump), parece ter um sistema que funciona perfeitamente. Porque de repente uma doutora do entorno criminoso lhe entrega um excelente candidato. Esta, Jennifer Peterson (a grande Diane Wiest), é uma idosa que trabalhou a vida toda, tem uma casa enorme, muito dinheiro e nenhum herdeiro. O problema é que a senhora sente-se muito bem, com saúde ótima. Mas este é empecilho menor para Marla. Alguns papeis são forjados, o juiz Lomax está convencido e iludido, a vitima está sem reação e voilà. Outra idosa galinha dos ovos de ouro.
Lubrificando cuidadosamente as engrenagens burocráticas da justiça por meio de médicos, advogados e inescrupulosos gestores de lares, a vigarista Marla e Fran (a mexicana Eisa Gonzales), sua parceira de crimes, nos negócios e na vida, acumularem uma pequena fortuna. Que vai crescer muito com o inesperado patrimônio da sra, Greyson. O que a dupla criminosa ignora é que a vítima da hora é mãe de um poderoso e implacável chefe da máfia russa (Peter Dinklage, o looser apaixonado por Frances MacDormand em “Três Anúncios para um Crime”). E tem início do jogo entre gatos e ratos. Ou entre ratos e ratos, se me permitem.
Combinação (quase sempre) entre thriller brutal e comédia com muitos tons de negro, “Eu me Importo” (Netflix) propõe uma situação próxima e identificável, reconhecível e dolorosa, extraindo disso todo o partido possível mediante uma trama áspera como poucas. Tão ácida quanto divertida, e como uma atuação impecável (vale o paradoxo...) de Rosamund Pike, o diretor britânico J. Blackson força o espectador a escolher entre diferentes tipos de monstros. E embora não seja uma escolha das mais confortáveis, talvez seja bem realista. É uma história sobre golpistas com graus variados de expertise , capazes de qualquer coisa para encher os bolsos. A questão é que aqui o alvo preferencial são idosos.
Marla é uma “empreendedora nata”. Como ela bem diz em off abrindo filme, é alguém que começou de baixo e que sempre soube que teria que lutar para conseguir o que queria. E que tudo valeria a pena: “Fazer as coisas corretamente é uma anedota que os ricos inventaram para nos manter pobres”, justifica. E é como ela funciona. O diretor Blackson lida com personagens do tipo amar/odiar a um só tempo e maneja as coisas é geralmente bem. Estamos diante de um coletivo de tipos horríveis e odiosos que não fazem além de tentar de tudo para sobreviver no crime. Este é um tipo de cinismo que é especialidade dos irmãos Coen: um argumento com intrigas, mistérios e revelações surpreendentes para segurar a atenção do espectador. Mesmo sendo muito difícil tomar partido de um lado ou de outro dos oponentes. Nem se sabe até que ponto a pobre senhora Jennifer pode ser tão inocente quanto parece.
O filme também transita por outro território curioso – politicamente incorreto ? – quanto ao personagem Marla. É uma mulher forte, inteligente, engenhosa, competitiva e que se coloca de igual para igual. Mas também é uma psicopata perigosa, e o filme evidencia isto de vários modos. Saber que existem Marlas, a médica, o gestor do lar dos idosos, o juiz , todos bastantes transparentes em seu desprezo pelo outro, em sua crueldade, saber sobre isso é algo incomodo, mas não por isso menos real. E aí o filme consegue dar seu recado e tira o espectador de sua zona de conforto.