A ditadura militar que assolou o Brasil entre 1964 e 1985 é o tema essencial (mas não o único) de “Deslembro”, obra de ficção mas de fundo autobiográfico. A roteirista e diretora Flavia Castro, gaúcha, 54, experimentou o exílio na Europa com parte da família durante a infância e a adolescência. Ela se projeta na personagem Joana (Jeanne Boudier), que experimenta a angústia da volta ao Brasil em 1979; seu ponto de vista adolescente é relatado no filme como uma história “menor”, mas inserida num contexto mais abrangente, porque mostra o que significa o peso (e o preço) do autoritarismo na vida das pessoas e das famílias. No momento de sua volta ao Brasil, com a mãe (Sara Antunes), e seus dois irmãos mais novos, Joana encontra no Rio sua avó paterna (Eliane Giardini), e com a ajuda dela tenta desvendar o pouco que se lembra do pai, jornalista que desapareceu dos porões do DOPS depois de preso e torturado.

“Deslembro” na verdade é um filme de personagens. Na verdade dois. Um deles, Joana, está naquela fase em que as coisas parecem definitivas: o rock de The Doors, o violão de Caetano Veloso em “Cajuína”, a literatura francesa e a poesia de Fernando Pessoa (o título do filme está num poema dele). Logo atrelado a isso vem o mundo real da nova vida no Arpoador, a intensidade das experiências: a jovem atriz Jeanne Boudier, excelente, faz desta experimentação algo não menos que surpreendente.

O outro personagem de presença marcante, obviamente, é a ditadura. Com um impulso emocional tão forte como pano de fundo, que fornece uma sombra permanente,não é de estranhar que a narrativa pareça (e é de fato) decididamente honesta, mas também surpreendentemente moderada. Nada de emoção contundente, o que interessa é a memória: a infância fragmentada, costurada pela imaginação, pregando peças na mente, focando falsamente imagens do passado, borrando algumas e ainda criando outras próprias.

O vigor de “Deslembro” é derivado da combinação de histórias pessoais e sociais, feitas de chagas sem cicatrizar, impostas tanto aos indivíduos como à sociedade brasileira em geral. Mérito indiscutível da diretora Flavia Castro é o de não permitir que a política ou a história do país tomem conta de seu roteiro. E também ela se afasta de um relato sobre maturidade, sobre a recuperação da identidade esquecida de uma jovem mulher.

A verificar, com reservas

Eternamente trilhando a vertente do escapismo, chega também às salas, a partir desta quinta-feira (19), um personagem ressurgido das trevas das cirurgias plásticas e procedimentos assemelhados: Sylvester Stallone. Não se sabe quem é mais personagem, ele como Rambo ou Rambo na pele de Stallone. A ironia da sinopse oficial é hilária: “Sua vida marcada por lutas violentas ficou para trás, mas deixou marcas inesquecíveis”. Então, para os saudosistas impiedosos e empedernidos e com o dedo no gatilho: “Rambo Até o Fim”(a quinta? sexta?) reencarna o sonho de Trump & aliados armamentistas de última hora.

Um clássico do Irmãos Grimm chega repaginado por visão feminista francesa, viés contemporâneo: “Branca Como a Neve”, de Anne Fontaine, com Isabelle Huppert. Nesta versão, os sete anões são sete homens adultos que assediam a heroína, perseguida pela madrasta. A crítica americana simplesmente odiou o filme, o que significa forte recomendação.