Há exatos três anos, Netflix dava a conhecer plenamente o talento do roteirista e diretor Scott Frank (“O Gambito da Rainha”) através de “Godless”, esta extraordinária, bela minissérie, um painel de quase oito horas sobre a mitologia sombria do gênero western como metáfora da construção dos Estados Unidos. Mas o que pode o faroeste, relíquia rude da era dourada de Hollywood, dizer sobre a vida da América â Com produção executiva de Steven Soderbergh, é uma afirmação espertamente subversiva do poder do gênero, mesmo que não seja exatamente o “faroeste feminista” como foi vendido na época de seu lançamento.

"Godless" é um painel sobre a mitologia do gênero western
"Godless" é um painel sobre a mitologia do gênero western | Foto: Divulgação

A minissérie, um melodrama perfeito e acabado como estrutura dramatúrgica calcada em emoções geradoras de conflitos diversos conduzidos por personagens com graus variados de complexidade, oferece enorme galeria de modelos clássicos: malfeitores, roubos de trem, heróis taciturnos, homens da lei de desiludidos, paisagens sem limites. E tem principalmente o peso de um mundo em que algo está desequilibrado. Aquela tensão entre liberdade e ordem, entre individualismo fora da lei e comunidades funcionais, tudo colocado à beira de um ponto de ruptura.

“Godless”, que conheci somente há poucas semanas, e forçado pelas circunstâncias que me obrigam à prospecção de imagens como lenitivo para a peste, não foi apenas a confirmação do talento de Scott Frank como autor de roteiros (“Minority Report”, “Irresistível Paixão”, “Logan”). Durante todo o tempo de sua duração, a minissérie se apresentou como tradicional e nova, ora com as qualidades de um longa na tela grande, ora exibindo todas as nuances de história e personagens da melhor televisão.

O argumento/roteiro produzido com precisão e clarividência por Scott Frank provoca algo silenciosamente revolucionário. Os western por muito tempo desempenharam papel determinante na construção do folclore da história americana. Nenhuma outra nação tomou um tempo e um lugar de seu passado e criou um imaginário de tais proporções como a criação do Ocidente pela América. Os faroestes celebraram o indivíduo heróico em vez da comunidade bem ordenada – mas inevitavelmente vulnerável. Eles glorificaram a dominação, seja sobre os nativos, os negros ou no território da fronteira. E transformaram as armas em fetiche, que permitem aos “heróis” salvaguardar a democracia – não importa o dano colateral de corpos espalhados pelas ruas após cada confronto.

Em vez de endossar esses motivos, porém , “Godless” leva os espectadores a interrogá-los. A série é construída em torno do confronto inevitável entre Frank Griffin (Jeff Daniels, direto para o olimpo dos arquivilões do cinema) e Roy Good (Jack O’Connell). Frank é um fora-da-lei perversamente carismático que se veste como um pastor e aplica a fúria bíblica em qualquer um em seu caminho. Roy é seu ex-protegido que se tornou inimigo mortal, um órfão que Frank adotou como filho favorito, e cuja deserção precipitou atos hediondos como o massacre dos habitantes de uma cidade inteira.

O arcabouço dramático abriga muitas outras vidas humanas, com graus variados de significação no contexto da trama. Há mulheres, viúvas na maioria (83 maridos mortos na tragédia da mina de prata, tempos atrás), de personalidades interessantes e/ou curiosas), ainda não de todo habituadas à sua independência na pequena cidade de Labellle. Há um xerife desacreditado a caminho da cegueira (o personagem é repleto de nuances), um ajudante da lei jovem e impetuoso; uma viúva que vive afastada da cidade com seu filho meio índio e uma velha índia. Um jornalista escrevendo a crônica da situação pendente entre Frank e Roy, uma igreja em construção e um pastor a caminho, mas que nunca chega – o “sem Deus” do título está justificado; há uma comunidade de negros que vive isolada, ex-soldados de um pelotão da Guerra da Secessão; há segredos e revelações como nos bons folhetins. E há um ente fantasmagórico a percorrer os caminhos desta ação assombrada. O tiroteio final é a coroação desta bela e inteligente homenagem.

Teria enorme prazer, vendo “Godless” em sala de cinema, tela imensa, dolby stereo, quase oito horas ininterruptas, e lembrando dos poemas de Ford, dos ralenti de Leone e das matanças de Packinpah, que Scott Frank soube reescrever com notável reverência.