Anya Taylor-Joy arrebata o público como uma personagem desfiadora no xadrez, considerado um mundo de homens
Anya Taylor-Joy arrebata o público como uma personagem desfiadora no xadrez, considerado um mundo de homens | Foto: Netflix/ Divulgação

Não, não me refiro a esses tempos cada vez mais empobrecidos, a estes realities shows brasileiros diários, baratos, de gosto execrável, protagonizados por uma ralé política que cria os mais descabelados enredos a partir de intrigas, artifícios, tramas. E mentiras, muitas mentiras, uma milícia delas. E a despeito do total desapreço que cultivo pelo melodrama desmazelado protagonizado pela escória rapinante anterior, este que agora aí está é tão repugnante quanto. Vou, portanto, só resenhar os melodramas autênticos e generosos que a ficção me oferece como lenitivo.

Mais do que um gênero, durante muitos anos o melodrama foi o coração do cinema, seu horizonte social, estético e político. Ao longo da segunda metade do século passado, o cinema melodramático consolidou sua identidade não só como gênero, mas também como imaginário popular, com suas construções de identidade sexual e suas frequentes intervenções na representação nacional por meio de alegorias familiares. Bem mais do que simplesmente enaltecer o xadrez como esporte, arte e ciência, a minissérie “O Gambito da Rainha” (Netflix) está arrebatando plateias domésticas seriéfilas – embora palavra exdrúxula, o neologismo é preferível a seriófilo – não por ser o xadrez tão fascinante a ponto de arrrebatar multidões, mas porque foi embalado, forma e fundo, como um melodrama legítimo, que nada fica devendo ao modelo feito em Hollywood nos anos 1950 no qual foi inspirado.

O diretor Scott Frank, cuja minissérie de 2017, “Godless”, já era exemplo perfeito e acabado de melodrama, ainda mais ousado porque resgatou com extrema fidelidade a melhor modelagem do complexo universo do western, foi buscar no livro de Walter Tevis os fundamentos para duas quebras de preconceito: o de que o xadrez não é material divertido para a ficção audiovisual, mas somente tenso, e que ele poderia ser praticado e vencido por uma mulher. Completemos este panorama adverso: essa mulher que se tornaria campeã é órfã e drogadita, e independente e fashion, em jornada de crescimento pessoal, em luta contra demônios. Sem dúvida, a melhor estratégia para contar a história de Beth Harmon era mesmo o melodrama clássico. Mas convenientemente temperando suas demonstrações de afeto, sacrifício e revelações inesperadas, conectando as emoções do público com o mundo representado na tela/telinha.

"O Gambito da Rainha": esplendor visual
"O Gambito da Rainha": esplendor visual | Foto: Netflix/ Divulgação

Mas como realizar (equilibrar) um filme vintage e ao mesmo tempo pós-moderno, um retrô charmoso e uma mirada feminista? Num cruzamento requintado entre a narrativa pop – evidente nas passagens no México e Las Vegas – e o esplendor visual do mestre Douglas Sirk, alemão radicado em Hollywood, “O Gambito da Rainha” (o título se refere a uma conhecida abertura do jogo) retrabalha todas as convenções (clichês, se preferirem), explora com estilo os ângulos contraditórios de seu personagem e a atmosfera de época; para isso, o roteiro transforma citações de filmes como “O Manto Sagrado”, drama histórico clássico, filão cinema sacro, ou de músicas como “Fever”, interpetação de Peggy Lee, e “Venus”, com a banda holandesa Shocking Blue, em momentos-chave do desenvolvimento narrativo.

A encenação dos embates de xadrez – assessoria ilustre do mestre ( o maior de todos?) Gary Gasparov, garantindo total credibilidade às partidas retira o suspense da dinâmica do jogo e o transfere para o interior do jogador, como naqueles sonhos no orfanato em que a Rainha e as outras peças ganham vida. A anglo-argentina Anya Taylor-Joy enriquece com bela interpretação o mundo elusivo de Harmon, desafiadora como uma mulher num tabuleiro só de homens, autodestrutiva na era do conforto, prodígio cuja inteligência transborda desse mundo cinza e permite a ela radicalizar a coragem e sobreviver a si mesma.