No final dos anos 1930, com filmes ingleses de enorme sucesso mundial como “O Homem que Sabia Demais”, “Os 39 Degraus” e “A Dama Oculta”, o The New York Times escreveu: “Três instituições valiosas que os britânicos têm que nós nos EUA não temos: a Magna Carta, a Ponte da Torre de Londres e Alfred Hitchcock”.

Nunca pertenci ao clube de críticos que consideram as comparações odiosas. Além de inevitáveis, são também necessárias porque, antes de mais nada, (in) formativas – de resto, know-how, responsabilidade e dever do colunista.

Mesmo às voltas com atribulações causadas pele presença incomoda do poderoso David “E o Vento Levou” Selznick, que em 1940 produziu “Rebecca”, o recém-chegado Alfred Hitchcock conseguiu feito memorável: Oscar de melhor filme e melhor fotografia, e outras dez indicações. Este clássico instantâneo, que está comemorando 80 anos, permanece como poderosa e resistente lição de como adaptar a atmosfera doentia de uma novela-referência, no caso a de Daphne du Maurier. Mas nem todos são capazes de assimilar ensinamentos valiosos. Na conservadora e insossa “Rebecca” atual apenas uma pálida e burocrática sombra (literalmente) do expressionismo das imagens em preto e branco da versão de quase cem anos atrás.

Cena de “Rebecca”: noção da figura reprimida e do trauma romântico da novela escrita por  Daphne du Maurier estão presentes na versão da Netflix, dirigida por  Ben Weathley
Cena de “Rebecca”: noção da figura reprimida e do trauma romântico da novela escrita por Daphne du Maurier estão presentes na versão da Netflix, dirigida por Ben Weathley | Foto: Netflix/ Divulgação

Aquela adaptação da novela dirigida por Hitchcock é dos tais filmes que encarnam um gênero: o romance gótico clássico. E como boa parte da obra do mestre, sua ressonância na atualidade é inconfundível. Em contrapartida, a versão que acaba de estrear mundialmente na tela menor da Netflix é uma produção apenas decorosa, demasiado tímida para reinventar o material original, limitando-se a esboçar os traços de uma desmaiada aquarela – tudo muito bem composto e esteticamente harmonioso, ambientes, mobiliário, vestuário – o tradicional desenho de produção como ambientação de época para uma trama sem vida, sem paixão.

E havia motivos para criar expectativas favoráveis deste remake (?): a fama de diretor cult do também inglês Ben Wheatley, angariada depois de cinco títulos realizados entre 2011 e 2018 por conta de um estilo feito à base de ação, suspense, violência gráfica e humor muito negro. A sensação de que Weathley pudesse aportar um caráter pessoal à “Rebecca” com este desconcertante “british-touch” funcionou como uma opção evidente, mas logo descartada diante do imbatível “hitch-touch”.

O começo deste “Rebecca 2.0”, pelo menos, é sugestivo e convida a pensar que Weathley foi onde o puritano Código Hays não permitiu que Hitchcock fosse em 1940.

(N.R: Entre 1934 e 1968, toda a produção hollywoodiana teve que se submeter ao crivo de uma censura severa em questões morais – na verdade uma autocensura dos próprios estúdios pressionados por fortes grupos conservadores.)

O romance entre Maxim, o viúvo ricaço e amargurado e a anônima jovem dama de companhia (Armie Hammer e Lily James) teve muito aumentada a temperatura sensual no romance em Monte Carlo. Na versão de Hitchcock foi bem mais difícil incendiar aquela atração física entre Laurence Olivier e Joan Fontaine.

Uma vez que a ação passa para a mítica Manderley, mansão de Maximilian De Winter onde a segunda esposa vai travar combate com a quimera da primeira, morta e perfeita na memória de todos, a história se torna familiar e reconhecível. Mas o pior, frustrante pela surpreendente timidez de um diretor ousado no plano formal, agora trabalhando como um estreante deslumbrado com o enorme orçamento à disposição e medo não menor de desagradar uma produtora que dá as cartas e distribui chaves para uma fila grande de realizadores que estão migrando das salas de cinema para as salas de estar, via plataformas.

Ben Weathley consegue (afinal) um foco interessante. Para além do romance e do filme original, a noção da figura reprimida e do trauma romântico que carregamos em cada novo relacionamento é igualmente relevante na sociedade moderna e nos rituais de conquista. Roteiristas (são três) e diretor enfatizam essa leitura, expondo todo o subtexto. Mas o filme derrapa no essencial: a “materialidade” do espectro da morta todo-poderosa. A onipresente ausência de Rebecca não é melodramaticamente forte para torná-la tão inesquecível, ou tão ambígua, ou tão insondável quanto pretendem fazê-la. Ou como era a assombração permanente na vida miserável do personagem de Joan Fontaine em 1940.

Aliás , falando em protagonistas, Laurence Olivier e Joan Fontaine são o casal da primeira versão. Armie Hammer (por que sempre penso que se parece com Rock Hudson ?)_e Lilly James fazem o que podem para preencher os perfis, mas... Já Kristin Scott Thomas, em sua homo-afetiva fidelidade quase necrófila, está à altura de Dame Judith Anderson, a governanta Sra. Danvers original – transpira esnobismo em papel que nasceu para interpretar.