Neste fim-início de ano, o passatempo preferido da critica cinematográfica mundial, esta leviana, intolerante , apressada e “engraçadinha” (agora em grande maioria hospedada, infantilizada e vulgarizada na internet), tem sido massacrar “Cats”, o musical inglês que estreou mundialmente no Natal. Parece mesmo que há por aí uma espécie de concurso para saber quem produz a frase de efeito mais ofensiva e debochada, desmerecendo ao máximo a adaptação cinematográfica da excêntrica obra de Andrew Lloyd Webber, dirigida por Tom Hooper e interpretada por um bravo grupo de atores e dançarinos dispostos, acima de tudo, a encarar um desafio de tais proporções.

Reza a lenda, verdadeira, diga-se, que a trajetória que vai do conceito Broadway ao conceito Hollywood enfrenta tantos obstáculos que, durante qualquer transposição do palco para o cinema há sempre doses excessivas de risco e audácia (podemos chamar de petulância, ou de irreverencia). No caso de “Cats”, a montagem cênica de êxito global que se mantém lotando teatros durante quatro décadas e gerações, a principal dificuldade foi desde sempre a de que seu público potencial tinha um modelo de “Cats” na memória, e que haveria inevitavelmente uma confrontação com o trabalho de Tom Hooper, um diretor elegante e ousado, dotado de visão emotiva, apaixonada mesmo (“O Discurso do Rey”, “Os Miseráveis”, “A Garota Dinamarquesa”).

A luta maior seria a de preservar o universo visual e musical criado pelo compositor e produtor Lloyd Webber, por sua vez inspirado pelos poemas de T.S Elliot em “O Livro dos Gatos Práticos do Velho Gambá” (“velho gambá” era o apelido de Elliot dado por outro poeta modernista e amigo, Ezra Pound), publicado em 1939, um compendio lírico e livre sobre psicologia e sociologia felina. Uma vez que a trama é mínima (sobre certa noite em Londres, quando um bando de gatos de rua, os Jellicles, devem escolher qual deles vai ascender para o Heaviside Layer – uma espécie de paraíso dos gatos – para gozar uma vida melhor), o espectador é convidado a experimentar o filme principalmente como um espetáculo. Mise-en-scène em combinação de luzes, música, dança, entretenimento. E isto o filme tem, com certeza.

'Cats': é preciso atravessar a primeira meia hora de indecisões e se “aclimatar” aos gatos para gostar do filme
'Cats': é preciso atravessar a primeira meia hora de indecisões e se “aclimatar” aos gatos para gostar do filme | Foto: Divulgação

O problema é (e ele existe de fato): “Cats” demora um tempo (quase) precioso para encontrar seu ritmo e a emoção, construindo assim (especialmente com recursos de maquiagem e os cenários) o espírito de felinidade dos personagens. Quando isto acontece, acontece com talento: números musicais (canções), coreografia e o recado que se quer transmitir. Mas é necessário atravessar cerca de meia hora de indefinições e indecisões (quase aborrecimento), buscar a aclimatação (os gatos parecem mesmo meio estranhos) para chegar àquilo que é intenso, emocionante e espetacular na obra. É certo que “Cats” necessita de melhores transições entre os números musicais.

Também há pouco fluxo narrativo, e deve-se ter sempre em mente que o que se vê nunca deixa de ser um filme. Mas a obra montada nos palcos do mundo é sempre um espetáculo. E o diretor Tom Hooper abraça essa filosofia. Ele coloca todo seu empenho nas sequências com canções e na coreografia. Não se pode esquecer que é tudo uma fantasia, e isto sempre requer uma suspensão voluntária da incredulidade para se ver um filme de ação ao vivo (e não de animação, como Spielberg chegou a cogitar em 2014) sobre gatos cantando e dançando.

Acho o filme um prazer festivo. E contei a história que vi para meus bichanos, Smoke, Petit Gateau e Mitzie. Adoraram, embora soubessem desde sempre tudo o que a patriarca Old Deuteronomy (Judi Dench) explica com sensatez no monólogo final. E decisivamente, definitivamente, “Cats” não merece tamanha má vontade e tamanho mau humor.

Assista ao trailler de 'Cats"

https://www.youtube.com/watch?v=sL1t7QUSWQU