“O mais importante na vida é eleger uma profissão, mas isso fica por conta do destino”. (Blaise Pascal, citado antes dos créditos). Ou “o amor não me interessa, gosto de sensações, da aventura.” (Sofia, a personagem do insosso título em português dado pela Netflix a este recente lançamento em sua plataforma).

Na contracorrente de um conjunto de estereótipos apoiados no imaginário coletivo, relacionados em particular às relações de dominação social, econômica e sexual, a cineasta francesa Rebecca Zlotwoski escreveu e filmou uma pequena história amoral e moderna, ligeira e muito solar, que vem para desmontar justamente os clichês “à la plage” em torno das relações sexuais, culturais e monetárias de poder. O filme não esconde sua grande influência, e homenageia um dos nomes fortes da nouvelle vague francesa (1958-década de 60), o criador dos “contos morais”, Éric Rohmer. Claro, Rohmer foi cineasta único como autor de estudos sobre o amor. Mas a diretora Zlotwoski não desmerece o mestre e fez deste “Une Fille Facile” (Uma garota fácil), atualizando para este inicio de século, o que Rohmer narrou em “A Colecionadora”(1967): a revolução sexual dos anos 60 pelo olhar de uma jovem.

Em “A Prima Sofia” também há um colecionador ancorado com seu iate no porto de Cannes, locação do filme. É um especulador de arte, um brasileiro (o ator português Nuno Lopes) vivendo no luxo, predador tranquilo da carne jovem das mulheres em oferta, alguém que se declara anarquista porque “é mais fácil desprezar o dinheiro quando se tem do que quando não se tem”. As primas Sofia (Zahia Dehar) e Naïma (Mina Farid) estão no centro desta obra delicada mas sagaz, banhada pelo sol mediterrâneo e pelo som do jazz, na qual se encadeiam pequenos episódios durante as férias da dupla feminina, dupla que percorre um enredo cristalino: da praia à discoteca, com escala para dormir , ao ritmo do verão e dos encontros aleatórios que criam novas possibilidades.

Como na obra de Rohmer, aqui se trata também de ‘compreender’, para além de preconceitos, uma jovem com comportamento livre, com sexualidade franca e aberta, em contraste direto com os cânones sociais e morais de seu ambiente. E outra jovem, em rito de passagem. Aqui, o comportamento de Sofia (vivida por Zahia Dehar – famosa na França como protagonista, em 2010, ainda menor, de um escândalo na mídia por ter dormido com boa parte da seleção francesa de futebol) é visto pela diretora com um olhar enganador. Em vez de moralismo fácil, a atitude de Sofia é vista neste universo que parece exaltado, embelezado, como se servido de bandeja a quem tem a Côte d’Azur como paraíso inalcançável . Os homens são bonitos, gentis, sofisticados e com muito dinheiro. Sem ser didática, só com ações, Sofia abre os olhos da prima adolescente Naïma sobre o que são em realidade liberdade e poder, para além do dinheiro, e sobre a diferença entre princípios e valores. Em cena os cânones sociais e morais do entorno.

Não se enganem. “A Prima Sofia” parece, apenas parece um filme esvoaçante e carnal de verão. Há camadas a se descobrir nessa história que usa o erotismo como arma e função politica, e que é mostrado de maneira justa tanto a homens como a mulheres.

A questão de classes também está posta de maneira sutil e instigante, aquele mundo dividido entre quem está a bordo em definitivo e quem está a passeio. Podendo, eventualmente, ser visto como ladrões de ocasião. Com corpos esculturais, mas ladrões fora daquele cenário.