Domingo passado foi aniversário dele. Nove décadas. Alguns dos oito filhos se reuniram, havia netos, bisnetos em torno do patriarca avesso às comemorações.

Patriarca? O estranho sem nome, o policial implacável de métodos diretos. O romântico. O republicano reacionário (???), o revisionista dos maus modos republicanos. O liberal, o antirracista, o apoiador do casamento gay, do #metoo. O arquétipo heróico que vagava pelas telas foi por muito tempo identificado com o conservadorismo épico das eras Reagan, Bush( pai e filho), Trump – a quem apoiou em plena contracorrente democrata hollywoodiana e de quem vem se afastando mais e mais, e da maneira mais critica.

Teve muitos nomes que o identificaram no cinema como ator, usando essas identidades como trampolim para o estrelato. Convenhamos. Mesmo: que outra figura com trajetória como a dele consegue manter tamanha vigência criativa nessa idade, realizando um, às vezes dois filmes por ano, e filmes de relevância? Na grande maioria dos casos, atingir a nona década de vida é destino inevitável de aposentadoria absoluta em Hollywood, retirada completa do cotidiano de uma indústria que impõe adaptações rápidas às mudanças experimentadas a toda velocidade. Na melhor das hipóteses (disfarçadamente preconceituosas, ou nem isso), um ocasional papel de velhote “esquisito” ou “fofo” de passagem pelo crepúsculo da vida, sem muita compreensão do mundo e de como as coisas funcionam. Ele deu o troco definitivo contra essa imagem em 2018 com seu personagem em “A Mula”, estão lembrados? Aquele idoso que traficava droga para um cartel e criticamente recobrava a vitalidade negada, refletindo sobre a vida pelas estradas da América. Pois é. (As perguntas que Clint faz – a si mesmo e ao espectador – sobre o lugar do herói/anti-heroi tem um cenário muito concreto em tempo e lugar: a cultura dos Estados Unidos, marcada pela violência, suas manifestações, seus excessos, sua necessidade de redenção.)

Clint Esastwood em "As Pontes de Madison": química perfeita com a atriz Meryl Streep incendiou corações no mundo inteiro
Clint Esastwood em "As Pontes de Madison": química perfeita com a atriz Meryl Streep incendiou corações no mundo inteiro | Foto: Reprodução

A validade de Eastwood tem a ver acima de tudo com a distância que ele mesmo conseguiu se impor daqueles momentos de ícone que o tornaram famoso. Depois de “Os Imperdoáveis”, nunca mais voltou ao western. Quando, depois de quatro filmes, disse adeus ao cruel e fascistóide detetive Harry, “o sujo”, nunca mais voltou fazer o tipo ou o policial atormentado e autodestrutivo de alguns títulos. Mas não esqueceu esse passado: ele o reviu sempre que pode, de alguma maneira critica e autocritica, a partir do lugar de exceção que ocupa e que todos reconhecem com admiração. Porque é um autor, um “auteur” no sentido que deram a ele os franceses, os primeiros que o descobriram para o resto do mundo. Um criador capaz de oferecer uma visão do mundo com as ferramentas mais nobres da linguagem cinematográfica: uma narração fluida, precisa, conforme o mais puro classicismo do cinema dos EUA.

(“Nunca fui extremista. Posso ser liberal para certas coisas e conservador para outras” – entrevista para “Playboy”, fevereiro de 1974.)

Em suas muitas interpretações como representante da lei (como em “Um Mundo Perfeito”, a mais complexa de todas), Eastwood se pergunta o tempo todo sobre o papel do indivíduo que, frente ao sistema e às instituições, não pode dar sempre respostas submissas ou abaixar a cabeça. Essa ideia de heroísmo aparece em sua obra cada vez mais delineada de maneira sutil ou difusa, mas com precisão suficiente para ser vista como um dos eixos fundamentais de seu olhar de artista. E esse olhar, por sua vez, permite que ele transite com surpreendente flexibilidade por todos os temas e gêneros possíveis do cinema. Isto o faz também um artista complexo e portador de muitos riscos, o principal deles não ter deixado de frequentar qualquer gênero (basta ver o que com o drama romântico em “As Pontes de Madison”).

Para mim, nove títulos fundamentais, um para cada década de vida. Cada cinéfilo que construa a sua lista. Ou cale-se e se arrependa para sempre.

1 – Três Homens em Conflito (1966). O spaghetti western bem temperado pelos chefs Sergio Leone e Ennio Morricone.

2 – Fuga de Alcatraz (1979). Clint dirigido por seu mestre maior, Don Siegel. Além da fuga, a ação carcerária como analise sobre a desumanização da vida atrás das grades.

3 – Bird (1988). O amor de Clint pelo cinema só encontra paralelo com outra paixão: a música. Cinebiografia do compositor e pianista de jazz, a lenda Charlie Parker.

4 – Os Imperdoáveis (1992). Obra prima do western outonal, o filme é a história de um velho fora da lei aposentado, levado pela vida a confrontar de novo sangue e morte.

5 – As Pontes de Madison(1995). Surpresa total: o temível durão tirava da cartola um apaixonado drama romântico que partiu corações mundo afora. A química em fogo lento entre Clint e Meryl Streep e a cena final sob a chuva: existe o amor verdadeiro ?

6 – Sobre Meninos e Lobos/Mystic River (2003). Com mais de 70, em tempos de retiro, Clint entra neste século com força total: abusos de crianças, vingança e eterna sombra do passado. Brilhantes Sean Penn, Tim Robbins e Kevin Bacon.

7 – Menina de Ouro (2004). Intenso e opressivo drama sobre o mundo do boxe, mas levando ainda para fora do ringue questões espinhosas como eutanásia e feminismo.

8 – Cartas de Iwo Jima (2006). Falado em japonês, o filme seduziu o público pelo ponto de vista adotado: o olhar do inimigo na guerra, a empatia pelo outro lado.

9 – Gran Torino (2008). Não desmerecendo outros títulos notáveis, esta seria a cereja do bolo. Na pele de um idoso mau humorado com mudanças culturais e geracionais no bairro, Clint aprofundou a permanente discussão em torno do racismo que hoje, mais que nunca, segue manchando os Estados Unidos com sangue, violência e vergonha.