O designer gráfico Carter, interprepatado pelo rapper Joey Bada$$) é morto pelo policial Merk, vivido pelo ator galês Andrew Howard, 
de forma muito semelhante àquela que liquidou George Floyd em 2020; cena que se repete em loop temporal como no cult “Feitiço do Tempo” (1993)
O designer gráfico Carter, interprepatado pelo rapper Joey Bada$$) é morto pelo policial Merk, vivido pelo ator galês Andrew Howard, de forma muito semelhante àquela que liquidou George Floyd em 2020; cena que se repete em loop temporal como no cult “Feitiço do Tempo” (1993) | Foto: Courtesy of Netflix

Os dois melhores curtas metragens entre os cinco concorrentes este ano ao Oscar da categoria ficção tinham policiais como protagonistas. “The Letter Room” e, claro, o grande vencedor, “Dois Completos Estranhos”.

Lançado em streaming via Netflix e disponível desde 2 de abril, “Two Distant Strangers” conecta de maneira inteligente duas temáticas e formatos amplamente utilizados no cinema recente. De um lado, faz a denúncia do racismo e da violência policial. E de outro, lança mão do esquema narrativo do loop temporal, herdado da comédia pioneira e cult “Feitiço do Tempo” (“Groundhog Day”,1993), no qual o mesmo dia se repete indefinidamente na vida do personagem vivido por Bill Murray, um cínico jornalista de tevê mergulhado numa rotineira roda viva profissional.

Com duração de 32 minutos, “Dois Completos Estranhos” se passa em Nova York e começa numa manhã em que um jovem casal sai da cama. O designer gráfico Carter (o rapper Joey Bada$$) parece querer disfarçar após o que foi uma noite sexo-casual com Perri (Zaria Simone), dizendo a ela que precisa ir logo embora alimentar seu cachorro em casa. Ambos são negros. Ah, e o protagonista é um cara atraente e adorável, mas a simpatia inicial detectada em seu encontro com Perri logo se transformará em uma situação de pesadelo. Beco sem saída.

Assim que sai do apartamento dela, Carter encontra na calçada o policial Merk (o ator galês Andrew Howard), racista e violento, com quem se desentende. O NYPD o mata de forma muito semelhante àquela que liquidou George Floyd em 2020 (aqui é uma vendedora de rua que filma tudo com o celular). Na cena seguinte, ele reaparece acordando na cama com Parri e, com algumas variações, novamente sai à rua e é vitima do mesmo agente. E, então, uma e outra vez, e mais uma, e outra, três, dez, cem vezes, até que ele possa encontrar um plano de confrontar seu agressor e, aparentemente, reformular o curso da h(H)istória. A coisa pode ser mais complexa, mas ele vai tentar não ser mais liquidado.

Tendo na retaguarda Kevin Durante, astro da NBA, a dupla Trevor Free, roteirista de shows televisivos, e o diretor Martin Desmond Roe jogam com as variantes possíveis de uma situação muito limitada em termos de ação física, embora esteja presente a capacidade de surpreender o espectador. Mas Carter, faça o que quiser, estará sempre travado. Sua impossibilidade e sua frustração são, certamente, a de milhões de afro-americanos que sabem que seus recursos para escapar das armadilhas policiais são muito poucos.

A dupla de codiretores sabia perfeitamente o que fazia quando optou pelo recurso do loop temporal, porque a decisão faz todo sentido quando se sabe que a sociedade estadunidense (e em especial a comunidade afro-americana) vive em uma espécie de ameaça recorrente, um déjà vu constante, uma cilada “legal” da qual não se pode escapar.

Houve quem visse em “Dois Completos Estranhos” um filme um tanto óbvio, com ênfase no didatismo, às vezes manipulador e oportunista. Prefiro classificá-lo como muito criativo quando se trata de construir, a partir da ficção, um poderoso, provocador, às vezes paranoico ensaio/manifesto sobre a violência policial, a impunidade e as consequências dolorosas do racismo sistêmico.

E o fato de o filme incluir nos créditos finais uma lista com nomes de afro-americanos que morreram pelas mãos da policia durante suas atividades diárias – muitas dessas atividades e situações são semelhantes ao que Carter faz aqui – deixa claro que esse tipo de incidente acontece o tempo todo. E que parece não haver saída desse ciclo de violência institucionalizada.