A francesa Céline Sciamma, diretora dos cativantes “Tomboy” e “Girlhood” (Garotas), assina o magnífico filme de época “Retrato de uma Jovem em Chamas”, um compêndio sobre a paixão amorosa, a arte e o destino das mulheres, com as excepcionais Noémie Merlant e Adèle Haenel. A cineasta viaja ao passado, muda de século e de lugar, mas não perde de vista sua reafirmação dos valores da liberdade individual. A obra, de, com e para mulheres (e homens dispostos ao compartilhamento) abre nesta quinta (5) o ciclo programado pela Casa de Cultura da UEL para este mês de março, no Cine Com-Tour.

As inquietações de Sciamma seguem intactas neste longa-metragem, no qual constrói a história de uma pintora, Marianne (Merlant), que chega a um casarão na costa francesa da Bretanha, em fins do século XVIII, para pintar o retrato de Heloise (Haenel) que se nega a posar porque compreende que a pintura vai confirmar para sempre seu casamento com um homem desconhecido.

“Os amantes sempre se sentem como se estivessem inventando algo?” , se pergunta a modelo. Os amantes se comportam como artistas? Quem sabe? Criar é a arte de amar, e provavelmente a intensidade dramática deste requintado filme advém da convicção com que esse ato de fé se duplica entre paixões clandestinas e sororidade mágica. De um lado está a maneira como a diretora Sciamma, companheira de Haenel (a modelo) na vida real, filma a mulher que ama; e por outro está a maneira como uma pintora representa de memória a imagem da mulher pela qual se apaixona. Sciamma conduz todo o relato ao redor das possibilidades: o amor ou recordação, a “decisão dos amantes” diante da “decisão dos poetas”, como sugere o pintor ao evocar o mito de Orfeu e Eurídice.

'Retrato de uma Jovem em Chamas':  filme fala da invenção do amor numa época em que as mulheres existiam só para serem lhadas, desejadas e desconsideradas pelos homens
'Retrato de uma Jovem em Chamas': filme fala da invenção do amor numa época em que as mulheres existiam só para serem lhadas, desejadas e desconsideradas pelos homens | Foto: Reprodução

O jogo de espelhos está servido como um banquete franqueado ao espectador. Embora o filme, de extraordinária sutileza, nunca force ou imponha. “Portrait de la Jeune Fille en Feu” fala da invenção do amor em uma época em que as mulheres existiam só para serem olhadas, desejadas e desconsideradas por homens. A ausência do masculino, em paralelo a um tom que oscila entre o conto gótico e o romântico, faz com que o processo amoroso que o público presencia seja ao mesmo tempo enigmático e sensual. Fotografado com uma luz delicada tanto em interiores em penumbra como em exteriores cinzas e azulados, o filme captura o afeto e a sedução que surge entre ambas a partir da relação que se estabelece como pintora e modelo invisível, a princípio, e modelo em plenitude na segunda parte do relato.

Há no filme uma subversão das histórias tantas vezes contadas: o plano-contra-plano, a sensualidade do olhar, o encantamento e o desejo que pertence somente às mulheres. Sciamma busca aqui percorrer as camadas da paixão entre suas protagonistas em um mundo em que a presença das mulheres (Mariane, Heloise, sua mãe e a criada, Sophie) parece ter afastado definitivamente os homens.

Boa parte da sólida substância deste filme deve-se também ao olho clínico de Celine Sciamma no momento de tirar o máximo partido de suas duas protagonistas: a magnética Noémie Merland na pele da jovem pintora sensível, risonha e independente, e uma Adèle Haenel que mede milimetricamente o trânsito entre uma tímida introspecção até um consentido abandono romântico.

Um final duplo – tão inventivo e emocionante o primeiro e tão poderoso o segundo – encerra este filme inteligente que sabe representar de que maneira nós, espectadores recordaremos esse encantamento, esta chama do amor, e como os converteremos em memória pura, sem que nenhuma convenção social seja capaz de nos roubar.

Confira aqui o trailler de 'Retrato de Um Jovem Mulher em Chamas"