Se a paternidade de certo tipo de comédia inglesa charmosinha, levezinha e altamente exportável pode ser atribuída a alguém, o teste de DNA sem dúvida apontaria para Richard Curtis, roteirista de clássicos básicos como “Quatro Casamentos e Um Funeral, “Notting Hill”, “Simplesmente Amor” e “Questão de Tempo”.

Curtis, mestre em criar estruturas de precisão suíça como apelo popular, juntou-se - desta vez somente como roteiristam - a outro britânico também famoso, o eclético Danny Boyle, e ambos assinam este produto de puro artesanato pop, uma espécie de musical-comédia-romântica como homenagem inquestionável à melhor banda de rock de todos os tempos: The Beatles.

A atraente premissa argumental de “Yesterday”, lançamento nacional a partir desta quinta (29), se baseia num fenômeno estranho, inquietante e sensacional que nunca chega a ser explicado, mas simplesmente acontece: depois de um apagão durante o qual é atropelado por um ônibus, o medíocre músico amador Jack Malick (Himesh Patel), habituado a tocar em feiras, casamentos e batizados (é também funcionário de supermercado) , percebe que é a única pessoa no mundo que conhece e se lembra dos Beatles.

Este brilhante ponto de partida – o que seria não apenas do mundo, mas do universo sem o quarteto –, no entanto, é levado pela dupla Curtis & Doyle a se converter em comédia romântica tola, protagonizada por um casal (presumivelmente) de adultos que se amaram desde crianças, mas que ainda precisam de cerca de uma hora da metragem do filme para se beijar e proferir frases estupefacientes (ela) como “passei minha vida esperando que você despertasse e me quisesse” (sic).

Filme traz o repertório dos Beatles para embalar uma história de amor próxima do sentimentalismo otimista e conservador
Filme traz o repertório dos Beatles para embalar uma história de amor próxima do sentimentalismo otimista e conservador | Foto: Reprodução
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O despertar de Jack é numa realidade sem “Yesterday”. Sem “Hey Jude”. Sem “All You Need is Love”. E ele é o único a se lembrar de John , Paul, George e Ringo. E do legado musical do quarteto. Em que pese o que a sensatez exigiria de um filme com tal argumento, há de se revelar nenhum interesse em explorar a influência dos Beatles na história do pop ou sugerir como teria sido a música após a dissolução da banda.

“Yesterday” também não coloca em dúvida se as canções deles foram ou não êxitos instantâneos, além de deixar claro que o carisma de Paul, John, George e Ringo pouco teve a ver com seu legado, e que a música que produziram é igualmente genial se interpretada por um zé-ninguém empunhando um guitarra acústica.

Mais próximo daquele sentimentalismo otimista e conservador de um tipo de cinema fabulista e “feliz” como o do estadunidense Frank Capra, e distante do humor contemporâneo cético e ácido, “Yesterday” é uma fábula que opta por não tomar conhecimento das mudanças socioculturais que o mundo conheceu desde que Beatles & anos 1960 surgiram e fincaram pé no horizonte. O filme evita a crítica e envereda por caminhos mais amáveis e condescendentes neste que é também um conto moral sobre a verdade, a criação e a beleza como elementos imprescindíveis da arte e do mundo – porque o protagonista aproveita a oportunidade para apresentar como seus os grandes sucessos dos Beatles, uma moral superficial naif e previsível.

Outro ponto para reflexão, além do bom mocismo fake da narrativa: não existe conflito, aparente ou sutil. Atributos de resto de Danny Boyle, diretor de “Trainspotting” e “Quem Quer Ser um Milionário”, alguém que privilegia a espetaculosidade acima de tudo.

Mas felizmente resta - muito acima de bobagens como aquela piada horrorosa de Ed Sheeran - soberano e intocado, perene e inimitável, o mítico repertório dos Beatles. Para sempre, amém.