“O mais pessoal é o mais criativo”. A frase, do mestre Martin Scorsese, foi adotada como lema pelo estudante de cinema Bong Joon-ho quando na Universidade Nacional de Artes, em Seul. A maior inspiração e guia do sul-coreano, o lendário Scorsese e demais diretores dos filmes concorrentes reconheceram e saudaram Bong e sua comissão de frente asiática que, com irresistível empatia, no último domingo (9) tomaram de assalto o palco do Dolby Theatre para recolher a estatueta de melhor filme conferida a “Parasita”, a partir de hoje de volta ao circuito exibidor de Londrina.

O Oscar 2020 deve ser considerado como mais um prêmio (ou capítulo) necessário para as mudanças. Este muro finalmente caiu. Nunca na história do prêmio, desde que em 1956 foi criada a categoria de produção de fala não inglesa, um mesmo filme tinha feito a original dobradinha. Parecia improvável que “Parasita” – ou qualquer outra realização não estadunidense – levaria o Oscar de melhor filme e também o de melhor filme estrangeiro. Ano passado, “Roma” de Cuarón bem que tentou (com poderoso lobby da Netflix, aliás a grande derrotada de 2020), mas conseguiu apenas o de melhor estrangeiro (a partir de agora rebatizado como melhor filme internacional).

O elenco de 'Parasita' com o diretor Bong Joon-ho: Oscar de melhor filme e melhor filme estrangeiro, uma façanha nunca conquistada
O elenco de 'Parasita' com o diretor Bong Joon-ho: Oscar de melhor filme e melhor filme estrangeiro, uma façanha nunca conquistada | Foto: Divulgação

Como numa eletrizante rodada de pôquer, Bong Joon-ho não apenas fez este belo par de ases como fechou a rodada com uma poderosa e imbatível quadra, acrescentando direção e roteiro original à galeria de estatuetas. Uma façanha inimaginável horas antes da gala, não pela qualidade de “Parasita” (que é incontestável: para mim, um dos dois melhores do ano, com “1917” ocupando um muito honroso segundo lugar), mas porque Hollywood nunca foi amante de qualquer tipo de revolução, sendo regra geral sua embolorada performance de conformista. Premiar “Parasita” pode marcar o início de uma mudança de estratégias e paradigmas no ecossistema cinematográfico mundial. E já não é sem tempo o amplo reconhecimento do cinema asiático contemporâneo, este vibrante e fascinante universo de formas e temas na contramão da estratificação artística de Hollywood.

Os quatro Oscar obtidos por “Parasita” reconhecem um criador e um trabalho que são um gênero em si mesmo, mesmo recebendo aqui e ali a reducionista etiqueta de thriller. É um filme que teve custo final de menos de U$ 20 milhões, um quase nada para os padrões da indústria americana e que faz justiça ao tema que aborda, questão globalmente crucial de nosso tempo: a crescente desigualdade econômica.

Há alguns anos sob pressão por sua escandalosa obsolescência em questões de diversidade, a Academia de Hollywood abriu-se há pouco para a entrada de 2 mil novos integrantes com direito a voto. Se antes era 92% branca e 75% masculina, agora os afrodescendentes representam 16% de seus membros e as mulheres 32%. A entidade também rejuvenesceu, e a idade média baixou de 62 para 50. E muitos profissionais que tiveram acesso e voto não são cidadãos dos Estados Unidos. Essas mudanças não evitaram que este ano houvesse apenas uma atriz negra, Cynthia Erivo, entre os 19 nominados em categorias de interpretação, ou que nenhuma mulher estivesse entre o quinteto de realizadores nominados.

Mas o triunfo absoluto de “Parasita” sinaliza que se alcançou um ponto de inflexão. Importante, mas ainda não definitivo.