Allen, à vontade no drama
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quinta-feira, 04 de janeiro de 2018
Carlos Eduardo Lourenço Jorge<br>Especial para Folha 2
Este melodrama em chave retrô, com grande atuação de Kate Winslet envolvida em triângulo amoroso de recorte rigorosamente clássico, pode ser lido mesmo por quem não esteja disposto a isso de forma terapêutica/autobiográfica, como se Woody Allen, através de sua obra, falasse de assuntos de sua vida privada. Embora seja esta uma regra comum para que se queira analisar a carreira de qualquer criador em qualquer área da atividade artística, no caso de Allen é muito difícil que, a essa altura de sua carreira (47 filmes, 82 anos) não surjam paralelos. É quase impossível, diante de "Roda Gigante" (em segunda semana de exibição em Londrina), dissociar o desconforto da trama ficcional da renascida discussão sobre seu casamento com Soon-Yi, filha adotiva de Mia Farrow (mas não há aqui referências às acusações de assédio).
O filme está sendo demolido pela crítica americana, em primeiro lugar porque há no momento uma predisposição mórbida para destruir qualquer coisa que o cineasta faça; e depois, porque há um quarteto de desajustados personagens adultos no filme e um menino que é testemunha silenciosa do caos ao redor (e desenvolve particular e perigosa obsessão). O que não se sabe ao certo é se Allen vive distanciado de tudo o que se comenta sobre ele e seus filmes mais recentes, ou se está consciente ou inconscientemente provocando o espectador a fazer este tipo de leituras. Conhecendo e acompanhando esta carreira de quase 50 filmes, acredito na segunda hipótese, porque, embora "Roda Gigante" não seja nenhuma obra-prima, está bem distante de seus trabalhos mais descartáveis. Mesmo quando se sabe que o drama se transforma em aposta bastante teatralizada, como neste caso. Esta história de (des)amores, enganos e desenganos, ambientada na então radiosa Coney Island dos anos 1950, apresenta Allen em sua faceta mais pomposa, sentenciosa e sobrecarregada o que provoca saudades do Allen suave de outros tempos, com seu cinema que fluía com leveza e espírito lúdico.
O filme está narrado em off (e às vezes dirigido à camêra) por Mickey (Justin Timberlake), um salva-vidas metido à poeta e com pretensões dramatúrgicas, especializado recolher náufragos de desilusões amorosas e existenciais é o bonitão que deixará a seus pés as mulheres do filme. Uma delas é quase quarentona Ginny (Kate Winslet), frustrada esposa de Humpty (Jim Belushi), tipo tosco e alcoolista, empregado do parque de diversões do balneário onde esta a roda gigante do título. A outra é Carolina (Juno Temple), a filha de Humpty que chega a Coney Island para fugir do marido gangster a fim de liquidá-la.
O filme não escapa dos formatos conhecidos do cinema do diretor de "Hanna e Suas Irmãs", "Interiores" e outros de sua fase "bergmaniana" (aqui mais atenuada mas ainda assim mantendo certa gravidade de tom). Até pode ser dito que é um remix de vários roteiros e de suas temáticas favoritas: a nostalgia da Nova York, dos anos 50 (no caso, Coney Island), os já citados triângulos românticos com mulheres de idades distintas e/ou relacionadas entre si, as referências a clássicos literários, o amor de seus personagens pelo universo do cinema, seus personagens femininos fortes e complicados (Kate Winslet fazendo as vezes de Blanche Dubois de "Um Bonde Chamado Desejo" está caricatamente ótima) e seu interesse mais recente em trabalhar formatos do teatro clássico ianque, como ONeill, Williams e Albee.
No entanto, a grande sacada em "Roda Gigante" é o trabalho de iluminação do diretor de fotografia Vittorio Storaro. (Não é novidade a atração de Allen por grandes fotógrafos, sendo notáveis as colaborações com Gordon Willis, Carlo Di Palma, Vilmos Zsigmond e Sven Nykvist.) Carta branca na mão e na câmera, o italiano Storaro, como em "Café Society", criou uma paleta expressionista, com luzes e cores quase maneiristas que conduzem o filme ao território do melodrama tão cultuado por cineastas (Douglas Sirk, entre outros) na Hollywood dos anos 1950 e 60. Neste sentido o filme adquire uma coerência entre forma e fundo, terminando por dar coerência a uma narrativa que poderia estar condenada irremediavelmente a um peso insuportável. O que, entretanto, não elimina o pessimismo que perpassa o filme, acentuando a estéril busca da felicidade.