Faltando apenas conferir “1917”, o quarteto de potenciais favoritos ao Oscar está quase completo com a estreia na cidade de “Adoráveis Mulheres”, lacuna indesculpável na premiação dos recentes Globos de Ouro e Critics Awards, ao lado de “Parasita” e “Coringa”. Um dos melhores filmes do ano passado, “Little Women” representou um desafio (adorável, com certeza) para a roteirista e diretora Greta Gerwig (“Lady Bird”): transpor para o cinema uma obra literária que acabou de completar 150 anos, um romance permanentemente amado pelo público.

Ela conseguiu um equilíbrio simples, mas extremamente eficaz: manteve-se fiel à essência do texto e ao mesmo tempo estabeleceu o necessário diálogo com o espectador do século XXI. Uma ajuda importante ela obteve da própria autora do livro, Louisa May Alcott: as mulheres em cena podem parecer “datadas” de várias maneiras, mas a universalidade e a atemporalidade das questões que compõem a sua substância mais essencial são indiscutíveis.

'Adoráveis Mulheres': transpõe para o cinema uma obra literária que acaba de completar 50 anos
'Adoráveis Mulheres': transpõe para o cinema uma obra literária que acaba de completar 50 anos | Foto: Reprodução

Embora seja um filme de época, esta característica não escravizou a diretora às convenções do gênero. É obra em constante movimento, que respira e pulsa, e seus personagens jamais aparecem como móveis e utensílios. Ritmo dos planos e das cenas, movimentação dos atores, rompimento total com a cronologia linear tanto do romance como de todas as cinco versões feitas para o cinema (1918, 33, 49, 94, 2018) – todos eles elementos com os quais a direção trabalhou para reordenar os eventos do romance em favor de um ambicioso e talentoso ensaio sobre a relação entre os fundamentos do passado, as decisões do presente e as consequências do futuro. Em ótica feminista, claro. Foi como se Greta Gerwig tivesse decidido que cada geração deve ter sua própria versão da história das irmãs March: a tempestuosa Jo, a tenra Beth, a bela Meg e a romântica Amy, que estão crescendo em Concord, Massachusetts, durante e após a Guerra Civil.

Ainda que o olhar da diretora seja evidentemente clássico, ela continua em busca da leveza (aquela de “Lady Bird” e “Frances Há”) em todos os aspectos, para além do roteiro. A cenografia se afasta daquele technicolor de estúdio da adaptação 1949 de Mervyn Leroy para se aproximar dos tons, digamos, “natalinos” da versão de Gillian Armstrong de 1995, conseguindo inclusive ampliar a riqueza visual mediante um grande trabalho nas tomadas exteriores – a sequência na praia é belíssima.

A trilha musical do francês Alexandre Desplat, onipresente (às vezes problemática pela constância ) sobretudo no início do filme, tem a virtude de introduzir um piano com sons de dinâmica modernidade. E então temos uma peça importantíssima, vital mesmo: o travesso ritmo dos diálogos, a mescla de humor e ternura que contagia de inevitável alegria e amorosidade as cenas familiares; e a solenidade de muitas falas surge da maneira mais espontânea possível.

Não há como fugir de uma das maiores virtudes: o elenco. Saoirce Ronan (quase impronunciável, mas não impublicável) tem a candura de Wynona Rider (na versão de 1995) e o descaramento de sua “Lady Bird”. Mas é Florence Pugh como Amy quem rouba a cena, e resulta tão agradável vê-la fazendo caras e bocas e olhares como soltando frivolidades para Timothée Chalamet (um dos homens periféricos da história).

A maior profundidade conferida a seu personagem Amy permite que as demais interpretações do elenco sejam mais complexas que nas outras versões de “Little Women”. Ela é essencial para o desenvolvimento da trama. Também a Meg de Emma Watson está soberba, e Gerwig dá mais importância às facetas da história de seu casamento. O que importa é que todo brilho deste elenco se deve a que as ambições artísticas das protagonistas transitam no mesmo plano que as amorosas. Paixão romântica e paixão cultural coabitam em todas e em cada uma delas, mas sem se misturar ou negligenciar: a força de vontade para escrever ou pintar das garotas é mais estóica do que nunca; mas, ao mesmo tempo, há mais solidez e atenção aos sentimentos amorosos do que nas demais adaptações. Sendo uma obra literária com óbvios e fortes componentes autobiográficos, as conexões entre realidade e ficção são elemento fascinante em “Adoráveis Mulheres”, bem como sua estrutura narrativa, nunca superficial e sempre rica em emoções complexas