“A bondade crescente no mundo depende em parte de atos não históricos; e, se as coisas não estão tão ruins para você e para mim como deveriam estar, é em boa parte devido àqueles que viveram fielmente uma vida oculta, e descansam em túmulos não visitados”.

Filme do diretor Terrence Malick traz lirismo e beleza em meio à guerra
Filme do diretor Terrence Malick traz lirismo e beleza em meio à guerra | Foto: Divulgação/

A frase, de significado e peso incontestáveis, está na abertura dos créditos finais de “Uma Vida Oculta”, mais recente obra do americano Terrence Malick – o filme seria exibido em Londrina no multiplex do Shopping Aurora no final de março/início de abril, mas... O pensamento foi tirado do romance “Middlemarch”, escrito em 1872 pela autodidata inglesa Mary Ann Evans (que assinava George Elliot porque achava que o peso de um nome masculino era maior que uma autora mulher).

Há realizadores cujo trabalho marca tanto o momento que seu estilo começa a ser copiado à exaustão. Depois de “Batman, o Cavaleiro das Trevas”, de Christopher Nolan, todas as adaptações de super-heróis tiveram que ser sombrias; depois de “Matrix” não houve filme de ação sem efeitos balísticos ou coreografia de ação espetacular. Do lado cinéfilo, Terrence Malick, rigorosamente um cineasta-autor, após um retorno depois de 20 anos com “Cinzas do Paraíso” (1978) e “Além da Linha Vermelha” (1998), começou a polir seu próprio estilo afinal consagrado em “A Árvore da Vida”, estilo imitado pela geração seguinte de cineastas que vieram em seguida.

Com “Além da Linha Vermelha” (1998) Malick demonstrou capacidade única para encontrar lirismo e beleza onde nunca tínhamos suspeitado que podia existir, inclusive na guerra. Sua visão reflexiva da Segunda Guerra Mundial oferecia uma perspectiva nova, bela e profunda, e deixava distante aquele promissor cineasta de “Terra de Ninguém” (1973). Sua evolução como autor atingiu seu ápice no ambicioso, importante e polêmico “A Árvore da Vida”. Malick se propôs falar do mundo, assim, em geral. De sua concepção. Das perguntas que angustiam a humanidade desde sempre; e fez isso de uma forma mais próxima do ensaio cinematográfico do que da narrativa convencional.

No centro, um relato familiar que servia como metáfora perfeita, e uma proposta visual surpreendente. Música clássica, imagens quase documentais, recriação da formação do universo e até aqueles polêmicos dinossauros que repetiam uma cena de “Além da Linha Vermelha”, em que a compaixão também abria espaço no mundo animal. O que veio depois foi uma sucessão de filmes com histórias que pareciam uma paródia de si mesmos. Malick estava se enganando e, embora sempre tivesse momentos de beleza sublime, nada oferecia de interessante.

Por isso se esperava com ansiedade seu regresso a um cinema mais narrativo. E ele fez isso com “Uma Vida Oculta” (disponível em streaming: Google Play, Apple e Locke Filmes), onde se revela um mix de cinema mais convencional com aquele estilo nascido em “Além da Linha Vermelha”. O resultado é seu melhor filme desde “A Árvore da Vida”, um belo filme com imagens comoventes e com com uma abordagem extremamente sensível das relações familiares e humanas. É a história real de Franz Jagerstätter, camponês austríaco que, com a chegada de Hitler, decide não aderir ao nazismo como seus compatriotas e não combater na Segunda Guerra Mundial. Ele é preso e condenado à morte. Se em “Além da Linha Vermelha” Malick conseguiu encontrar poesia no campo de batalha, agora ele obtém lirismo abordando a tenaz resistênciaia de um ser humano simples. E mostra como um ato anonimo pode influenciar pessoas ao redor.

Malick nos mostra um mártir, e isso o ajuda a construir reflexões que ele tanto gosta sobre a religião. É diretor que busca a Deus por meio de imagens, e a espiritualidade permeia tudo isso. Há uma tendência de santificar o personagem e este é um problema que impede o filme de se transformar em obra quase perfeita. O aspecto religioso ganha peso excessivo, o que deixa escapar os motivos da decisão do personagem e das dúvidas que enfrenta. Isso é uma duração excessiva, no entanto, não impedem que “Uma Vida Oculta” seja uma daquelas experiências que é preciso viver no cinema. Malick é um realizador único que confirma aqui que tem ainda muito a dizer. Porque , mesmo que seu estilo se repita, a emoção continua verdadeira.