Circunstâncias e coincidências. Em São Paulo a trabalho, ajustei o cronograma para oportunidade única: assistir “The Irishman/O Irlandês” em sala de cinema convencional, tela grande, repleta de cinéfilos/cúmplices solenizados pelo juramento da omertá mafiosa siciliana: o voto familiar de honra e silêncio. Mas uma vez fora da sala, como silenciar diante da tarefa extraordinária e poderosa a que se propôs Martin Scorsese ? O diretor assina um drama crepuscular que foge a qualquer adjetivação corriqueira e aos chavões ordinários, uma tragédia que encerra um imenso ciclo sobre o submundo mafioso. E ao mesmo tempo oferece compêndio vertiginoso da história estadunidense da segunda metade do século 20. O filme, transformado em hype, está a partir desta quinta (28) disponível aos assinantes do streaming digital que não puderam assisti-lo em alguma das dez únicas sessões nos poucos cinemas brasileiros disponibilizados pela Netflix somente durante 13 dias.

Nestas quase três horas e meia de impiedosa, transparente e quase perfeita leitura da inexorabilidade do tempo, a história contada é a de um soldado da Segunda Guerra Mundial que na frente de batalha matava nazistas e depois, já nos anos 1950, passou a “pintar casas” (o livro de memórias em que se baseia o complexo e admirável roteiro de Steven Zailian chama-se “Ouvi Falar que Você Pinta Casas”, referencia aos crimes cometidos pela Máfia, cujo sangue salpicava as paredes concretas com desenhos abstratos...). Ele é Frank Sheeran, o irlandês do título (Robert De Niro), que depois da guerra foi de caminhoneiro entregador de carne a sicário profissional assalariado de um mafioso influente (Joe Pesci), e afinal guarda-costas do líder sindicalista Jimmy Hoffa (Al Pacino), e principal suspeito pelo misterioso desaparecimento e morte deste.

Através do protagonista, e seguindo o milimétrico roteiro de Zaillian, o espectador faz a leitura completa da história de um país que fala de ambição, poder, corrupção e crueldade. A política e o crime se associam em amálgama do qual nada escapa, nem os Kennedy. O que se observa não é tanto a transformação do personagem, mas também sua completa, total, absoluta coerência. Ele age movido pela amizade, sabedoria, lógica e defesa de sua família. E faz isso com as ferramentas que tem em mãos, não mais que isto. Sua maneira de atuar o mantém à distância da mitologia associada ao personagem É um filme sobre a máfia, como outras tantas da filmografia do diretor, e nada tem a ver com a adrenalina livre de “Os Bons Companheiros”(1990) ou com a sujeira sombria e impressionista de “Caminhos Perigosos”(1973). E tampouco a ideia é analisar como o estigma do poder e do pecado e da culpa (fixações do católico Scorsese) é filtrada até o mais profundo da alma, como se se tratasse de um novo “Poderoso Chefão”. Mas pensando bem, tudo isto está presente em “O Irlandês”.

Se alguns detalhes podem ser repreendidos no filme? Sua duração, não porque “O Irlandês” seja longuíssima em si mesmo – 209 minutos –, mas porque em alguns momentos pretende introduzir tantos elementos de conhecimento sobre os personagens reais da máfia e sobre o contexto do relato que as informações terminam por saturar e o filme perde algo de seu ritmo. Mas é problema menor. Este não é um filme “vertiginoso” como “O Lobo de Wall Street” ou “Os Bons Companheiros”; ele é mais comedido em tudo, porque estão observadas desde a terceira idade dos personagens, o que nos leva ao drama outonal com o qual o diretor encerra um imenso ciclo: ver os personagens principais idosos, artríticos, doentes ou desdentados jogando petanca no pátio do presídio, de onde só alguns sairão vivos, tem algo de ironia mas também de fecho melancólico sem que isso queira dizer que Scorsese se compadeça dos mafiosos ou tente justificá-los.

'O Irlandês':  em filme sobre a máfia, a política e o crime se associam em amálgama do qual nada escapa, nem os Kennedy
'O Irlandês': em filme sobre a máfia, a política e o crime se associam em amálgama do qual nada escapa, nem os Kennedy | Foto: Reprodução

O diretor marca com precisão aquela que se poderia chamar de obra-prima mais calculada, geométrica e perfeita, quem sabe? Longe de qualquer estridência, tudo funciona ao compasso de uma alma que se dilui. A própria duração do filme joga a favor. Não importa tanto o desenrolar da ação como sua perfeita suspensão em um relato que se blinda como qualquer interferência. O próprio filme, em si, cria seu próprio conceito de tempo.

E em meio a isto, um De Niro, um Pesci e um Pacino incomensuráveis. Longe dos excessos (um pouquinho Pacino, quem sabe?) a que os atores de Scorsese estão acostumados, tudo agora se arredondou. A ideia é mover apenas as faces transformadas pelo botox digital, que não incomodam, pelo contrário. “O Irlandês” cria sua coerência interna com sabedoria jamais vista no uso indiscriminado dos efeitos digitais.

De Niro vaga pelas recordações de sua vida tentando compreender porque sua solidão é tamanha, tão grande quanto o desprezo que sua filha (Anna Paquin, de olhar mortífero) sente por ele. E em suas divagações converte o próprio tempo em um espaço comum para o desassossego, o desamor e o arrependimento. Tudo o que resta a ele são seus cadáveres. Nada mais. Era disso de que se tratava.