O filme “Jogos Vorazes” (baseado na saga de Suzanne Collins) se beneficia de não ter a jovem protagonista reclamando o tempo todo
O filme “Jogos Vorazes” (baseado na saga de Suzanne Collins) se beneficia de não ter a jovem protagonista reclamando o tempo todo | Foto: Reprodução

Ao se adaptar o material, vários problemas fatalmente surgirão. O que funciona no papel pode não funcionar no filme. Cinema e literatura usam diferentes idiomas. As reflexões dos narradores são um elemento básico da literatura, mas em um filme você não pode ter seu personagem principal verbalizando ou dizendo tudo o que passa pela cabeça dele: para compensar, há o uso da narrativa em off. Felizmente. O filme “Jogos Vorazes” (baseado na saga de Suzanne Collins) se beneficia por não ter Katniss Everdeen (Jennifer Lawrence), a jovem protagonista, reclamando o tempo todo ou, imediatamente, não se inteirando de nada.

Lamentavelmente, na transposição da obra literária para o cinema com frequência perdem-se partes importantes do universo interior dos personagens. Exemplo didático é a adaptação do romance “Never Let me Go”, do Prêmio Nobel (2017) Kazuo Ishiguro – o melhor escritor em língua inglesa deste século, segundo a revista Time. O filme, de 2010, foi escrito para o cinema por Mark Romanek (também diretor) e Alex Garland – estranhamente, Ishiguro aparece nos créditos como co-roteirista. Ao perder a conexão com pensamentos complexos (que provocam revelações cruciais da personagem Kathy vivida por Carey Mulligan) , o filme sofre um desvio e se distancia dos momentos de sublimidade do romance de Ishiguro. Existe a voz narrando em off, mas ela não é suficiente para o espectador se conectar totalmente com os personagens e suas respectivas jornadas emocionais.

É um livro, um drama, uma FC sobre uma cuidadora-doadora (de órgãos). A adaptação é boa na medida do possível, mas para aquele leitor que agora assiste, o romance se impõe bem acima da transposição. Pode-se dizer, e com boas razões, que é um “resumão”; e quem viu o filme, lançado no Brasil em março de 2011, deve e precisa ler o livro. Ishiguro é um escritor muito bom, e sua prosa convidativa se equilibra com sofisticação entre a tradição do melodrama e a literatura de gêneros mais populares. Mas para chegar ao cinema sem sobressaltos, o autor precisou das mãos cuidadosas e também sofisticadas da já falecida Ruth Prawer Jhabvala, novelista e talentosa roteirista. Foi ela quem, em 1992, garantiu ao diretor James Ivory um dos melhores roteiros do fim do século passado, “Vestígios do Dia” (“The Remains of the Day”, premiado romance de Ishiguro).

'Vestígios do Dia', baseado em livro de Kazuo Ishiguro, com roteiro de Ruth Prawer Jhabvala, é uma das melhores adaptações do século 20
'Vestígios do Dia', baseado em livro de Kazuo Ishiguro, com roteiro de Ruth Prawer Jhabvala, é uma das melhores adaptações do século 20 | Foto: Reprodução

A história do mordomo Stevens (Anthony Hopkins), alguém que nasceu para servir e desperdiça o afeto de Miss Kenton (Emma Thompson), uma antiga colega de trabalho, está no livro de Ishiguro de uma maneira primordialmente, digamos, cinematográfica. O escritor faz o leitor ver o mundo pelos olhos do personagem, e isso é muito mais importante do que fazer o personagem falar sobre si mesmo. Mostrar, não contar, é o que Ishiguro faz maravilhosamente bem. A roteirista Jhabvala, com muita sensibilidade, compôs um roteiro privilegiando o sentido do detalhe, característica vital nas páginas de “Os Vestígios do Dia”. E o fluxo narrativo de Ishiguro chegou afinal à tela pelas imagens. É uma aula de adaptação. Confira no Netflix. E depois leia a fonte, se ainda não leu.

Outro tópico dessa relação mais conflituosa do que harmônica entre cinema e literatura refere-se ao que é preservado do texto original e aquilo que é descartado (para clarear o roteiro?) Um dilema com alcance dramático shakespeariano.Subtema para nosso próximo capitulo.