'1917:' como num videogame, filme coloca o espectador num estado de imersão como testemunha de conflitos cada vez mais complexos
'1917:' como num videogame, filme coloca o espectador num estado de imersão como testemunha de conflitos cada vez mais complexos | Foto: Reprodução

De saída, é preciso esclarecer algumas coisas. “1917”, candidatíssimo a vários Oscar, não é um filme feito em uma única tomada, um único plano sequência. Nem é um filme em “tempo real”. Neste momento, estas afirmações estão postadas indiscriminadamente na web por pessoas – críticos inclusive – que poderiam conhecer melhor esses fundamentos.

Pode parecer que foi filmado de uma só vez (o plano, ou o “take” único), porque o diretor Sam Mendes e o diretor de fotografia Roger Deakins o planejaram dessa maneira, mas provavelmente são entre 30 e 40 planos mais longos. Alguns deles duram 8, 9 minutos, e são de fato extraordinários. Mas não contínuos. E quanto ao tempo real, a trama narrada dura cerca de dez horas. Essa “desinformação” foi inicialmente divulgada pelo próprio diretor Mendes e sua equipe como parte da blitz publicitária do Oscar, para recrudescer a agitação do marketing em torno de um filme que parecia – apenas parecia – ter chegado atrasado à corrida pelas estatuetas. Preocupação de resto desnecessária, já que o valor desta inequívoca proeza técnica e narrativa vem se impondo decisivamente nas últimas semanas e já coleciona prêmios importantes.

Contam-se nos dedos as aproximações que o cinema fez mais recentemente à Primeira Guerra Mundial, esta carnificina que deixou mais de 20 milhões de mortos. Em “1917”, o inglês Sam Mendes (no currículo, os muito sólidos “Beleza Americana”, “007 – Skyfall” e “Estrada para Perdição”) colocou em jogo toda sua capacidade e ofício para aproveitar as possibilidades próprias da natureza de uma superprodução e entregar aquilo que, em primeira instância, representa um verdadeiro portento em sua confecção. Mas que, felizmente, é muito mais que isso. Não se trata só da combinação dos citados (e desafiantes) planos-sequência, mas da forma como este recurso sustenta o filme em seu ritmo emocional, calculado e intenso, para elaborar sequências que refletem a crueldade, a ironia e a orfandade dos conflitos bélicos levando o espectador a um alto grau de imersão.

A história é básica e beira a simplicidade: uma dupla de soldados britânicos deve cruzar o território inimigo para alcançar um enorme grupo de companheiros e impedir que caiam em armadilha fatal preparada pelo exercito alemão. Em exatas duas horas de narrativa, o que poderia ser apenas um golpe de ostentação e virtuosismo técnico em mãos irresponsáveis resulta em poderoso discurso com sentido dramático claro e recheado de implicações que levam o espectador à reflexão. Muito, muito dolorosa, sem dúvida.

O horror desta História, na visão de Mendes (baseado em imagens contadas a ele pelo avô combatente na Primeira Guerra) chega à plateia nesta aventura frenética de inegável verossimilhança, avalizada pelo preciso trabalho de câmera de Roger Deakins (fotógrafo fetiche dos irmãos Coen). Pois é justamente através dessa câmera que o espectador se converte no terceiro soldado da missão (quase) impossível naquele inferno em vida. Como em um videogame, “1917” coloca em nosso caminho de extasiadas testemunhas desafios cada vez mais complexos, permeando nossa imaginação com os medos e a angústia que asfixia seus protagonistas. Assim como eles, o público diante da tela deve estar sempre em alerta quanto ao que sucede ao redor, especialmente nos momentos onde o silêncio invade a sala, sinônimo de que algo ainda mais maligno está por vir.

É inegável que, desta vez, Mendes sacrifica um tanto o desenvolvimento de seus personagens (ainda assim, notáveis os atores George MacKay/Schofield e Dean-Charles Chapman/Blake) para permitir que a trama contra o relógio seja a principal protagonista. Se Francis Coppola transformou o Vietnam no pesadelo da corrupção nos EUA em “Apocalypse Now”, Sam Mendes transforma o front ocidental em “1917” num mar de lama infestado de ratos, num pandemônio abarrotado de cadáveres, sem lógica e sem piedade.

Uma aposta a considerar: aquele pesadelo da sequência noturna na cidade francesa, iluminada fantasmagoricamente pelo fogo e pelos sinalizadores, tem um débito para com o Kubrick de “Full Metal Jack” (“Nascido para Matar”), e de novo com Coppola. Afinal, eles sabem que Sartre não filosofou à toa. Afinal, todos nós sabemos...