Meu amor, você pode partir, não esqueça o seu violão.

Vá rever os seus rios, seus montes, cascatas.

Vá sonhar em novas serenatas e abraçar seus amigos leais.

Vá embora, pois me resta o consolo e alegria

De saber que depois da boemia

É de mim que você gosta mais.

Tantas vezes ouvimos "A Volta do Boêmio", de Adelino Moreira, que cantamos sem atinar com a letra – mas, prestando atenção, é de um machismo só comparável à "Amélia", de Mário Lago. Pois o sujeito se dirige à boemia explicando que voltou “pra rever os amigos que um dia eu deixei a chorar de alegria” e “me acompanha o meu violão” (ele deixou a mulher levado pelo violão e volta a ela com o violão...).

Entretanto, ele lembra que “sabendo que andei distante, sei que essa gente falante vai agora ironizar”... Vão dizer: “Ele voltou, o boêmio voltou novamente”, mas “partiu daqui tão contente, por que razão quer voltar?”

Então, ele diz “acontece”, e a gente pensa que vai contar porque voltou, mas não, apenas diz que “a mulher que floriu meu caminho de ternura, meiguice e carinho, sendo a vida do meu coração, abraçou-me dizendo a sorrir: meu amor, você pode partir, não esqueça do seu violão”...

Cáspite! Ela não só aceita ele ter vivido na e voltado para a boemia, como também recomenda não esquecer o violão! E que “vá rever os teus rios, teus montes cascatas, vá cantar em novas serenatas e abraçar teu amigos leais”... Ou seja: a mulher a quem ele não foi e continua não sendo leal, pede que vá abraçar os amigos leais!

Mais ainda, ela pede que ele “vá embora, pois me resta o consolo e alegria de saber que, depois da boemia, é de mim que você gosta mais”... Ela se vê e se declara como a segunda na vida dele, “depois da boemia”, e feliz com isso!

Esse samba-canção, com dezenas de gravações e milhões de discos vendidos, é hino machista e delírio egocêntrico. Por que, então, tanto sucesso e tanta permanência, a ponto de tantos saberem de cor? Serão machistas inclusive as mulheres que cantam de boca cheia? Ou será que a melodia é que encanta e nos faz cegar para a letra? Ou cantamos anestesiados pela repetição, como fazemos com os costumes que adotamos sem pensar?

Neste tempo em que a net democratizou não só o direito de opinar como também o de prejulgar e condenar, muitas vezes com base em informações falsas, fico pensando se não serei apedrejado por estas linhas. Machistão, dirão umas; feministinho, dirão outros. E eu apenas queria entender por que, numa roda, todos cantam de boca cheia, inclusive as mulheres feminizadas (que têm consciência feminista). Talvez, seja porque a música (a melodia, não a letra!) tem não só seu inexplicável encanto, como tem também a respeitabilidade das relíquias, que nos revelam o passado sem julgamentos. Os faraós escravizavam? Sim, mas múmia de faraó é inestimável.

Dá o que pensar. Afinal, Adelino foi um machista mor, foi apenas intérprete de seu tempo ou só um sonhador? Porque mulher assim talvez não existisse nem naquele tempo, só mesmo em sonho machista... Ou é canção para cantar sem pensar, só com o coração? Mas assim não será abdicar da nossa essencial racionalidade? E, entretanto, a criatividade também não é humanamente essencial? Mas e quando, como no caso, a criatividade tromba com a racionalidade? Indagações de um velho samba-canção.