Um sambista professor de respeito
Lições de respeito e autoestima fazem desse compositor aparentemente primitivo um brasileiro de avançada cidadania
PUBLICAÇÃO
sábado, 17 de maio de 2025
Lições de respeito e autoestima fazem desse compositor aparentemente primitivo um brasileiro de avançada cidadania
Domingos Pellegrini

Uma das mais cantadas músicas de carnaval desde 1967, "Máscara Negra" tem como tema o amor entre Pierrot e Colombina, personagens da Comedia Dell´Arte italiana, muito adotados no Brasil como fantasias carnavalescas.
É uma marcha-rancho que começa gravemente em tom baixo, a contrastar com as alegres palavras da narração impessoal: “Tanto riso, ó, quanta alegria / mais de mil palhaços no salão”... já com a embutida ironia de que todos os foliões são palhaços mesmo que não disso fantasiados.
O tom musical sobe e a letra foca num só personagem: “Arlequim está chorando / pelo amor de Colombina / no meio da multidão”.
Mas, em seguida, o foco narrativo muda para primeira pessoa (eu): “Foi bom te ver outra vez / tá fazendo um ano / foi no carnaval que passou”, evidenciando que a letra foi feita em parte por Zé Keti e em parte por Hildebrando Pereira Mattos, sem o devido ajuste, não só no foco como na lógica narrativa, pois quem passa a se apresentar é o personagem Pierrot: “Eu sou aquele Pierrot / que te abraçou / que te beijou, meu amor”.
E a fala de Pierrot, sem rimas, reafirma essa contradição com o começo da letra, fazendo suspeitar que Arlequim está triste porque Colombina, no carnaval anterior, terá escolhido Pierrot como parceiro de folia: "Na mesma máscara negra/ que esconde teu rosto/ eu quero matar a saudade"...
A esta altura, o tom é alto: “Vou beijar-te agora / não me leve a mal / hoje é carnaval”.
O roubo de beijo era (ainda é?) um cacoete nos bailes de carnaval, até entre desconhecidos, mas destaque-se que Pierrot antes previne Colombina (“vou beijar-te agora”) e respeitosamente pede que “não me leve a mal” pois “hoje é carnaval”, introduzindo assim no carnaval algo que se sobrepõe a qualquer festa, o respeito.
Assim se conserva um valor essencial para o relacionamento amoroso como para toda atividade humana, seja o respeito entre os próprios humanos como o respeito à natureza, às vocações, às opções políticas etc. Além do tom grave a evoluir para agudo, talvez seja esta a motivação profunda do sucesso e permanência dessa música com letra desconjuntada.
Compositor que pode ser tachado de primitivo, Zé Keti tem nessa autenticidade seu maior valor, como no samba "Opinião": “Podem me prender / podem me bater / podem até deixar-me sem comer / que eu não mudo de opinião: / daqui do morro eu não saio não. / Se não tem água eu furo um poço / Se não tem carne eu compro um osso / e deixa andar, deixa andar / daqui do morro eu não saio não” e “fale de mim quem quiser falar / aqui eu não pago aluguel. / Se eu morrer amanhã, seo doutor / estou pertinho do céu”.
Essas lições de respeito e autoestima fazem desse compositor aparentemente primitivo um brasileiro de avançada cidadania. Pode-se contrapor que o gosto pela favela parecerá conformismo, mas o sujeito que não quer sair do morro é o mesmo resiliente que cava poço e faz sopa de osso. Com espírito para ver que está pertinho do céu, o artista brasileiro José Flores de Jesus, popularmente Zé Keti.

